O ano é 2022. E o Brasil ainda não possui um serviço de comunicação pública fortalecido. Criada em 2008, durante o governo Lula, sob a Lei (11.652/08), a Empresa Brasil de Comunicação (EBC) padece com o sucateamento e denúncias de censura e perseguição contra funcionários.
Após o golpe contra a presidenta Dilma Rousseff, os primeiros passos do governo de Michel Temer foi o de apresentar um “realinhamento estratégico” que definiu que veículos, como a Agência Brasil, mudassem o foco para produzir conteúdos com maior característica de "comunicação estatal". A EBC passou a existir para "fortalecer a comunicação de Estado".
Já no governo Bolsonaro houve mais perdas. Por meio de uma portaria no ano de 2019, a TV Brasil fundiu com a TV Estatal NBR (TV Nacional Brasil), esse sim, um canal estatal com o objetivo de divulgar atos oficiais do Poder Executivo. Em maio deste ano, a Comissão de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática da Câmara dos Deputados aprovou uma proposta para suspender a portaria, uma vez que segundo o relator da proposta, o deputado federal André Figueiredo (PDT-CE), a portaria da EBC que fundiu os canais fere o princípio constitucional da complementaridade dos sistemas privado, público e estatal do serviço de radiodifusão.
Durante toda a gestão de Bolsonaro, os funcionários da EBC divulgaram vários dossiês com denúncias de censura e governismo na empresa. Dentre as denúncias, o uso dos veículos para promoção pessoal do presidente; a compra de novelas de cunho religioso mudança na programação para adequar às pautas do Executivo; não renovação de programas como “Estação Plural” que tratava de assuntos do universo LGBTQIAP+, entre outras inúmeras ações.
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A ação arbitrária mais recente foi a recomendação de demissão, por justa causa, da representante do Conselho de Administração, Kariane Costa, que poderá ser acatada ou não pelo atual Presidente da EBC.
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Para Joel Zito Araújo, cineasta, autor do livro “O Negro na TV Pública” e também membro do Conselho Curador cassado e da Frente em Defesa da EBC e da Comunicação Pública, este foi um período de trevas. “De censura e perseguição aos trabalhadores. De aparelhamento da EBC pelo Estado. De confusão entre comunicação governamental e pública. De militarização da empresa. De queda na qualidade dos programas. Grandes nomes da cultura nacional foram censurados ou invisibilizados, especialmente grandes artistas negros, como um programa de Nei Lopes e Dona Ivone Lara. O programa do B Negão que foi ao ar este mês passou mais de um ano engavetado”, diz.
Para ele, o desmonte da comunicação pública representou a censura no jornalismo, especialmente nos temas fundamentais como direitos humanos, a questão indígena, situação da população negra, a morte da vereadora Marielle Franco e pautas sobre o meio ambiente. “Sem esquecer a compra de novelas que tinham como função o proselitismo religioso. Foi também um período de um jornalismo submisso, acrítico, de uma TV com ‘enlatados comprados’ de grandes produtoras retratando, principalmente a África, de maneira estereotipada”, relata Joel Zito.
Embora ele aponte os retrocessos, reconhece acertos que fizeram com que a TV Brasil sobrevivesse e tivesse a aceitação dos brasileiros. “Muitas famílias com suas crianças, no período da pandemia, viam desenhos infantis na TV Brasil durante toda a manhã. Isso foi importante, especialmente considerando que as TVs privadas quase abandonaram a programação infantil na TV aberta".
Documento
Para resistir ao desmonte da empresa e para discutir com outros segmentos da sociedade a necessidade da comunicação pública foi criada a Frente em Defesa da EBC e da Comunicação Pública.
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Alguns integrantes da Frente, entre eles a presidenta do Conselho Curador cassado, Rita Freire, entregaram ao Grupo de Transição do governo eleito o caderno de propostas que foi desenvolvido em diversos seminários que discutiram a demanda por uma comunicação pública que dê conta da complexidade da sociedade brasileira.
“Nós tivemos meses de consulta e um seminário de fechamento para a produção deste caderno com base em materiais produzidos dentro da própria empresa e fora dela, e em debates, que foram para além da comunicação”, conta.
Segundo Rita, a Frente levou ainda, a mensagem de que qualquer definição em relação a comunicação pública é política, cultural e faz parte de um projeto de democratização do país.
“Tem ainda, uma missão fundamental em fazer frente a essa falsa polarização da sociedade brasileira que é produzida por interesses que não são da sociedade, mas que lida com preocupações, medos, preconceitos enraizados, racismo herdado do tempo de escravidão, com o machismo patriarcal e com o proselitismo religioso. Tudo isso leva a uma população submetida a formas de comunicação que não lhe dão a oportunidade de acesso a uma informação, a uma cultura e produção cultural que lhe permita olhar o mundo e o Brasil e a circunstâncias que estamos vivendo com olhos mais irrequietos, curiosos, generosos e uma capacidade crítica”, diz Rita Freire.
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A Frente defende propostas divididas nos eixos de gestão, infraestrutura e participação democrática que, entre várias coisas, se preocupa em resgatar e aperfeiçoar o modelo jurídico institucional da EBC, especialmente com a reinstalação imediata do Conselho Curador.
Outras propostas apontam para a ampliação do papel do Conselho Curador de consultivo para deliberativo, o resgate do Comitê Editorial de Jornalismo, a participação negra na gestão e na definição de conteúdos, a criação de um comitê de equidade de gênero e raça e um maior intercâmbio internacional, especialmente com a África e os países africanos de língua oficial portuguesa. Por último, a regulamentação da Contribuição para o Fomento da Radiodifusão Pública (CFRP), e com a inclusão de emissoras estaduais, comunitárias e universitárias no Projeto Digitaliza Brasil.
Os grupos técnicos de transição, segundo o Coordenador Geral dos Grupos, Aloizio Mercadante, terão até 11 de dezembro, para concluir o relatório final que deve constar proposta de estrutura organizacional, lista de eventuais atos normativos que precisam de revogação e sugestões de medidas prioritárias para os primeiros 100 dias.
Presidência da EBC
Doutor em Ciências da Comunicação pela USP e pós-doutor em cinema, rádio e TV pela Universidade do Texas, com uma trajetória premiada na produção audiovisual, Joel Zito Araújo é bem visto por setores preocupados com a invisibilidade da diversidade cultural brasileira como alternativa para a futura Presidência da Empresa Brasil de Comunicação em um projeto de reconstrução da empresa e da comunicação pública.
O nome de Joel Zito tem apoio entre trabalhadores da EBC, membros do Conselho Curador cassado e manifestações de apoio de integrantes da Coalizão Negra por direitos, da Articulação de Mulheres Negras, boa parte das grandes personalidades do movimento negro, o movimento de cineastas, começando pela APACI e APAN, e de muitas pessoas que participam da Frente em Defesa da EBC e da Comunicação Pública.
Joel Zito afirma que sua orientação e inspiração de trabalho no que tange à EBC, consiste no projeto de reconstrução que está contido no Caderno de Propostas “Reconstrói a EBC e a Comunicação Pública”.
Ele acredita ser essencial retomar e ampliar a participação do conteúdo independente. “Tiveram experiências muito boas que precisam ser resgatadas como o programa Ação Periferia, primeiro programa de rap brasileiro em rede nacional. Passava na Rádio Nacional de Brasília, e era produzido pela equipe de comunicadores negros que, na época, pertenciam a CUFA DF. Eu trago aqui o Ação Periferia porque ele exemplifica muito bem o potencial e o que significa este tipo de parceria. Este programa fomentou a produção nacional, mas principalmente local, de artistas do Hip Hop, dando visibilidade a trabalhos que antes poderiam ficar restritos, sem veiculação em rádios de grande alcance. E a mesma coisa é necessário que também ocorra com a produção audiovisual”, relata.
O programa Ação Periferia fez mais de 100 programas misturando entretenimento e informação de qualidade e ficou no ar entre 2009 a 2016.
Para o setor de audiovisual da EBC, Joel aponta que é preciso programas arrojados, em parceria com a ANCINE, para, por um lado, desafogar o gargalo de janelas de exibição para a produção independente do cinema brasileiro. Rita Freire acrescenta que durante os 15 anos da Empresa, foi construída uma rede de veículos e papéis importantes para a rede de veículos EBC. Como exemplo, citou as rádios na região amazônica, a Rádio Nacional da Amazônia e do Alto Solimões, e o Escritório do Maranhão que foram desativados e precisam ser resgatados.
“O projeto da Frente é também de resgatar, requalificar e colocar equipes e investimentos. E aí, vem algo que precisa ser feito que é o enraizamento da comunicação pública na região Norte, que é uma região de importância internacional. É preciso integração, proteção da floresta e dar voz de fato aos povos indígenas.”, diz Rita Freire.
Ela pontua ainda, que algumas experiências precisam ser resgatadas, porém inovando com novas possibilidades e alternativas, pois um projeto futuro precisa ter espaço para visibilidade da produção, informação e a produção cultural das periferias brasileiras que ainda são voltadas para si por não terem espaço nas mídias mercadológicas.
"A comunicação pública tem que ser janela para exibição e também para o trabalho informativo das regiões do Brasil profundo que está em todas as periferias. As populações silenciadas ou interpretadas têm voz própria. Como essas vozes dialogam com a sociedade?", explica.
Defesa da Comunicação Púbica
Segundo os membros da Frente em Defesa da EBC e da Comunicação Pública é urgente que a reconstrução comece pela recomposição do projeto de comunicação pública, com a revogação da lei que desmontou os instrumentos de autonomia.
Eles esperam que a EBC seja uma empresa pública independente e que vá de encontro às forças renovadoras e progressistas da sociedade brasileira, que foram as bases fundamentais da vitória da democracia nesta eleição.
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“Queremos convencer Lula e as forças progressistas que a sociedade brasileira só tem a ganhar, se considerar o potencial da EBC na disputa das periferias e várias regiões do Brasil que são objetos das fake news e da doutrinação da extrema-direita. A democracia só tem a ganhar se construirmos uma empresa de comunicação pública com autonomia e qualidade, que traga para o primeiro plano a criativa e incrível produção cultural e de pensamento de grupos muito diversos que estão na periferia das grandes cidades, no interior do Brasil, expressando-se através do audiovisual, do teatro, do circo, da literatura, dos slams, da música, com uma visão mais humana, afetiva, solidária, democrática e preocupada com os destinos do planeta que enfrenta um processo rápido de degradação”, conta Joel Zito.
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Compromisso
Para a Frente em Defesa da EBC a pessoa para ocupar a cadeira da Presidência deve necessariamente dominar o processo da Empresa para que entenda os avanços, retrocessos e o que precisa para continuar. Explicam ainda, que é necessário a visão estratégica sobre o papel da EBC, pois não se trata apenas de conduzir uma empresa.
"A EBC precisa passar por um processo de enegrecimento e feminização. Tem que virar indígena, tem que virar regional. Tudo que o Brasil precisa virar, a comunicação precisa também. Então se surgem nomes com este perfil é porque a discussão acaba chegando lá. A gente pressiona por um projeto de comunicação pública com esses compromissos", destaca Rita Freire.
Segundo Joel Zito “temos de empretecer e indigenizar a Empresa Brasil de Comunicação. Gostaria que Lula deixasse na EBC a mesma marca que ele deixou na universidade pública brasileira”.
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Edição: Flávia Quirino