8 de janeiro deve ser compreendido como momento culminante da expressão de um desejo de destruição
Depois dos quebra quebras e atentados terroristas que ocorreram nos dias 12 de dezembro de 2022 e 08 de janeiro de 2023, em Brasília, as palavras “omissão” e “conivência” integram as peças acusatórias dos processos contra o governador reeleito do Distrito Federal e do agora ex-secretário de Segurança Pública do DF, e passaram a ser frequentes nos telejornais e programas de análise de conjuntura.
Quem se omite de algo cuja função profissional deveria lhe demandar ação, deve responder por conivência, ou seja, por tomar partido ao não se posicionar contrariamente a algo que está fora da ordem. O mesmo raciocínio se aplica ao comando das tropas militares estacionadas no Palácio do Planalto e arredores (há um batalhão de Fuzileiros Navais bem próximo da praça dos Três Poderes): por que não deram ordens para a defesa incondicional do centro do poder político brasileiro?
No processo de ascensão do fascismo italiano e do nazismo alemão, no século XX, muita gente, em diversos países, foi omissa e, por isso, conivente, ou seja, o processo autoritário cresceu, se espalhou, se capilarizou e se consolidou em diversos países da Europa, com o conhecimento prévio e a anuência, mesmo que silenciosa, de pessoas que deveriam profissional e eticamente se contrapor.
No caso do atentado terrorista aos Três Poderes da república, convém considerar que o protesto foi convocado não apenas em reação à posse de Lula e seu sentido simbólico, mas também por conta do impacto objetivo dos primeiros decretos expedidos e medidas provisórias assinadas pelo presidente e por algumas e alguns de seus ministros, muitos dos quais revogaram decretos de Bolsonaro em diversas áreas e começam a incomodar o personagem “Mercado”. Os primeiros resultados das investigações apontam que os financiadores de maior vulto do ataque aos três poderes vêm dos setores da mineração e do agronegócio.
Vista em série histórica, a omissão conivente fica ainda mais evidente.
No dia 13 de junho de 2020 ocorreu uma espécie de ensaio do que se efetivou dois anos e meio depois: um grupo de bolsonaristas que pregava o fechamento do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal atacou o prédio do STF com um bombardeio de fogos de artifícios e fez ameaças.
A conivência da polícia foi ficando mais explícita nos atos recentes e com os acampamentos em frentes aos quartéis militares. Em 12 de dezembro de 2022, na ação da queima de vários carros e ônibus, e ataques à delegacias da Polícia Federal e da Polícia Civil, integrantes da Polícia Militar foram fotografados e filmados próximos das ações violentas, conversando com os terroristas.
A pedra estava cantada também pelo que ocorreu no ataque ao capitólio estadunidense, e pela postura belicosa e golpista do presidente derrotado Donald Trump, espécie de guru de Bolsonaro.
A versão brasileira da tática foi menos letal, mas mais abrangente: atacou e destruiu a sede dos três poderes brasileiros, e ocorreu após dois meses de acampamentos golpistas na frente de quartéis militares em diversas cidades do país, com total conivência dos comandos militares.
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Porquanto, o ponto clímax da violência de 08 de janeiro de 2023 deve ser compreendido como momento culminante da expressão de um desejo de destruição, que integra o projeto fascista, anunciado nas redes sociais.
O atentado à democracia aponta:
a intenção do bolsonarismo de revidar qualquer movimento do novo governo e a disposição do uso de qualquer tática que seja conveniente para os objetivos golpistas (bloqueios de estrada e aeroportos, atentados a bomba, quebra quebra em prédios públicos, destruição de torres de transmissão de energia);
o objetivo de impor uma derrota simbólica ao novo governo, que pode ser capitalizada por manobras sediciosas futuras;
demonstrar que apesar de derrotados na eleição, contam com o apoio de militares e forças de segurança, o que pode ser fator intimidador àqueles que pretendem perseguir e punir o fascismo bolsonarista, haja vista o impasse do presidente com o ministro da Defesa, que antes do ato terrorista na Esplanada defendeu os acampamentos nos QGs como legítimos e democráticos e, até o momento, permanece no cargo.
Fato é que a extrema direita, depois de sair do governo, já não se vê sequer implicada em “jogar dentro das quatro linhas da Constituição”, como gostava de alegar o ex-presidente, exímio agitador golpista.
Perdida a batalha da via eleitoral, e derrotada a tática de questionar a lisura das urnas eletrônicas, agora parece valer tudo para desestabilizar, inviabilizar e derrubar o terceiro governo Lula. Todavia, a tática de permanecer na ofensiva, sem o aparato do governo, pode abrir espaço importante para que o governo Lula se adiante, com respaldo popular, de outros poderes e parte da imprensa, e imponha limites objetivos ao neofascismo brasileiro.
Será o dia 08 de janeiro o momento máximo da escalada golpista? O ponto a partir do qual o governo eleito e os poderes legislativo e judiciário poderão romper com a tolerância ao fascismo e com a ilusão que é possível ignorar e conviver com os ataques minimizando os conflitos, evitando a indisposição inevitável com as forças armadas?
Seremos capazes, daqui por diante, de contar uma história unificada sobre a tentativa de golpe como uma das maiores ameaças à democracia brasileira, ou toleraremos, por exemplo, que escolas e academias militares abordem esta data em tom apologético, como momento de necessária insurgência de patriotas, tal como narram o início da ditadura de 1964 como a “revolução” protagonizada por eles que salvou o Brasil?
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No âmbito da comunicação, o ocorrido nos permite diagnosticar os limites de nosso sistema de concessão pública para empresas privadas: por que empresas privadas que detém concessão pública, como o SBT e a Record, não pararam a transmissão de seus programas de auditório, no domingo, para mostrar a tentativa de golpe que estava em curso? Não era um assunto importante? Não é um assunto que rende anunciantes? Qual função pública essas empresas cumprem se são incapazes de alertar a população de um atentado terrorista? Por que vários telejornais e jornais insistem em chamar golpistas e terroristas de manifestantes?
Cabe também indagarmos a leniência excessiva do poder judiciário: por que os órgãos judiciais foram lenientes com anos de manifestantes defendendo o golpe nas ruas? Por que fizeram vista grossa com manobras anti-democráticas de Bolsonaro antes e durante o processo eleitoral? Subestimaram a ascensão e o grau de periculosidade do fascismo?
Em parte as respostas à essas perguntas apontam para os elos de conivência do neoliberalismo com o fascismo. Nesse bojo estão corporações privadas de comunicação, do agronegócio, da mineração. Será de extrema relevância que as investigações achem os fios da meada e desarticulem as milícias fascistas que veem se forjando a mando de dirigentes e associações dos setores do agronegócio e da mineração (leia-se garimpo ilegal e corporações transnacionais do ramo).
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As perguntas precisarão de respostas em forma de ações efetivas: como o acertado afastamento imediato e por noventa dias do governador Ibaneis Rocha; o julgamento e prisão de centenas de invasores e financiadores dos atos; a exigência de reparação econômica dos custos da destruição aos culpados; a criação de barreiras que bloqueiem a via eleitoral para plataformas políticas fascistas.
Fato é que, com a sequência do fascismo pós-presidência de Bolsonaro, a democracia brasileira passa a conviver com o terrorismo doméstico como prática política, e com lobos solitários que serão ameaça permanente à lideranças políticas e à vida democrática. O fenômeno, aliás, se alastra pela América Latina, e ameaçou e ou depôs governos de presidentes eleitos e, mais recentemente, ameaçou diretamente a vida das vice presidentas Cristina Kischner, da Argentina, e Francia Márquez, da Colômbia.
Junto às medidas institucionais, rigorosas, sem conciliação e sem anistia que se espera que os poderes Executivo, Judiciário e Legislativo tomem, será necessária a força popular organizada nas ruas, demonstrando a capacidade de proposição de mecanismos de fortalecimento da cultura política da população brasileira, no sentido de uma democracia participativa vigorosa e intransigente ao fascismo.
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*Rafael Villas Bôas é professor da Universidade de Brasília.
**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.
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Edição: Flávia Quirino