O Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase) é a Lei que regulamenta a execução das medidas destinadas aos adolescentes que praticam ato infracional, bem como todos os planos, políticas e programas específicos de atendimento aos adolescentes em conflito com a lei.
Sancionada em 18 de janeiro de 2012, o Sinase, de acordo com especialistas ouvidos pelo Brasil de Fato DF, ainda está longe de ser implementado conforme suas diretrizes.
A socioeducação é norteada tanto pelo Sinase quanto pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). “A política pública de Socioeducação perpassa pela incompletude institucional e é importante que assim seja para não fortalecermos a lógica de instituições totais. O processo ressocializador precisa funcionar numa lógica de rede, onde nós, atores da política de atendimento aos jovens em conflito com a lei, devemos articular ações, acessos dessa população aos mais diversos serviços e espaços sociais que auxiliem no fortalecimento do desenvolvimento humano e o protagonismo juvenil”, destaca a pedagoga, especialista em Sistema Socioeducativo, Luana Euzébia.
O artigo 227 da Constituição Federal define que é dever da família, do Estado e da sociedade,assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida e a cidadania os colocando a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. Porém se tratando de adolescentes autores de ato infracional, a legislação, ao considerar sua condição peculiar de desenvolvimento, aplica-lhe medidas socioeducativas que não objetivam somente a punição, mas principalmente a mudança de comportamento através de uma perspectiva pedagógica.
De acordo com o anuário divulgado em 2022 pela Secretaria de Justiça e Cidadania (Sejus), referente ao período de 2021, havia no regime de privação de liberdade 735 socioeducandos. Na semiliberdade, 470 adolescentes. E ao todo, 1.875 cumpriram medidas de liberdade assistida ou de prestação de serviço à comunidade. No relatório, foi destacado que um mesmo adolescente pode ter sido atendido por mais de uma medida.
Maioria negra. É o que confirma o estudo "Trajetória dos Socioeducandos no Distrito Federal: Meio aberto e semiliberdade 2022", do Instituto de Pesquisa e Estatística do Distrito Federal (IPEDF), que aponta que desses adolescentes, 87% dos internos do sistema socioeducativo em Brasília são negros.
De acordo com a pesquisa, separados por idade, 52% dos jovens privados de liberdade têm entre 16 e 17 anos. No quesito renda, 38% deles faziam parte de famílias com média mensal de um e três salários mínimos. 56% não frequentavam, ou frequentavam pouco a escola antes de começarem a cumprir a medida socioeducativa. Porém, no momento em que a pesquisa foi realizada, 87% declararam estar estudando.
Educação
Francisco Celso, que é professor de História, especialista em Educação Inclusiva e membro do Núcleo de Ensino da Unidade de Internação de Santa Maria diz que cada unidade tem autonomia para desenvolver seu fazer pedagógico.
“Não existe um planejamento conjunto de todas as unidades. Mas existem os documentos normativos, como o Currículo em Movimento da educação básica do DF e as diretrizes de escolarização na socioeducação. As diretrizes precisam ser revistas para atender melhor às demandas do socioeducativo, pois o sistema é muito rotativo. Particularmente, planejo minhas aulas usando como referência os eixos transversais do Currículo que são diversidade, direitos humanos e sustentabilidade”, aponta.
Ele explica que optou por trabalhar com aulas temáticas. “É impossível ser ‘conteudista’. Não tem como dar sequência aos conteúdos por causa da rotatividade. Jovens saem, entram, são transferidos de turma, turno ou de módulo. Desta forma é preciso planejar aulas que consigam atravessar a mente e o coração daquele estudante naquele momento”.
Longe de ser implementado
Mesmo com práticas pedagógicas norteadas pelo Sinase e outras mudanças geradas pela aplicação do sistema, o documento está longe de ser implementado na íntegra, pois tanto nos aspectos legais e normativos quanto na logística de execução da política pública, o Sistema passa por grandes dificuldades para sua implementação.
“O nome socioeducativo é um nome muito bonito, mas carrega muito da cultura prisional, desde a estrutura até a própria cultura dentro das unidades de internação. Ainda predomina uma cultura punitivista e policialesca”, diz o professor Francisco.
Sem Direitos
Ravena do Carmo, ex-interna do Centro de Atendimento Juvenil Especializado (CAJE), que hoje é agente cultural, militante na pauta da socioeducação, professora de Ciências com várias especializações e mestranda em Políticas Públicas e Gestão da Educação diz que em suas atuações dentro das unidades enquanto ativista, observa que os direitos dos adolescentes não são respeitados na íntegra. “É importante deixar enfatizado que o Sinase é um grande passo para a justiça social. Só não é aplicado como prevê. Ele é uma política pública”, diz.
Mesmo com toda dificuldade para implementação, o professor Francisco pondera que nestes 11 anos do sistema no DF houve avanços. “O Sinase já provocou algumas mudanças. Em 2014, foi extinto o CAJE e descentralizado o Sistema Socioeducativo com a criação de nove unidades de internação com estrutura um pouco diferente da anterior, mas ainda assim muito falha ao meu entender. Continua numa estrutura física muito próxima ao que é o sistema prisional”.
O CAJE atuou por 38 anos no Distrito Federal e vivenciou a superlotação comum aos presídios. O diretor da Unidade de Internação do Plano Piloto (UIPP) na época, Renato Villela de Souza chegou a declarar que a instalação abrigava 450 adolescentes, sendo 300 sentenciados e 150 provisórios. Esses 150 ficavam num espaço onde cabiam 23 pessoas.
Ravena do Carmo, por já ter cumprido medida antes da implementação do sistema e atualmente trabalhar para o cumprimento do SINASE diz que há diferença entre os períodos. “A diferença é que antes ficava muito independente por causa da gestão da unidade. Não havia uma regra e um padrão de direcionamento pedagógico e social dentro das unidades de internação e outras medidas. Hoje é permitido no máximo quatro adolescentes por cela. Agora temos uma unidade feminina exclusiva. Quando cumpria a medida, tínhamos alas separadas, mas ficávamos todos juntos na mesma unidade”.
A pedagoga Luana Euzébia, que atua há 12 anos no Sistema Socioeducativo, completa dizendo que antes toda a política de atendimento socioeducativo seguia os parâmetros da Assistência Social e a normativa era o Código de menores. “Antes do Sinase, o ECA era praticamente a lei que orientava o atendimento socioeducativo. Na verdade era um bem bolado de ECA, Assistência Social, Tratados e Acordos Internacionais e a Constituição Federal”.
Direito à informação
Uma outra crítica corriqueira é dos próprios socioeducandos. Não às leis contidas no Sinase, mas ao desconhecimento delas. A grande maioria acredita que junto ao conteúdo pedagógico, poderia ser acrescido com informações sobre o Sinase.
Denise Araújo, ex-socioeducanda e que hoje é auxiliar administrativa, diz que não sabe se teve os direitos respeitados, porque não sabia quais eram. “Mesmo depois de sair não fui atrás por justamente já ter saído. Tínhamos o horário de banho sol. Às vezes era reduzido por conta da quantidade de agentes, tínhamos visitas aos sábados, alguns plantões só deixavam sair quem tinha a visita. Outros já deixavam todo mundo. Era legal porque algumas meninas não tinham visita e a família da gente sempre acaba acolhendo, né?”
Reconstrução
Ravena descreve as Unidades de Internação como um lugar hostil e de muita frieza. “Tem um cheiro diferente, o cheiro da tranca. Esse cheiro é uma das coisas que mais me marca porque ele não muda”.
Mesmo não tendo vivido a socioeducação por meio do Sinase diz que o período de internação foi um aprendizado, porém não acredita em ressocialização.
“Acontece uma reconstrução de trajetórias porque de uma certa forma, nós que passamos pela privação da liberdade, já éramos socializados. Da forma como está, é tudo muito vazio pedagogicamente. Então acredito numa reconstrução”.
Denise Araújo diz que a passagem pela socioeducação também lhe deu aprendizados e foi determinante para escolhas futuras. Ela sente como se fosse a primeira vez que o Estado tenha a enxergado, pois lá apareceram as primeiras oportunidades de conhecer novos caminhos. “O Sr. Abdalah (agente do sistema socioeducativo), tinha um projeto de leitura que me despertou uma paixão antiga que era ler. Lá conheci o Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) também. E em um dos encontros tive a oportunidade de me apaixonar pela área do jornalismo, mas infelizmente não consegui cursar a faculdade”.
Estigmas
Mesmo com histórias de sucesso de reinserção na sociedade como a de Ravena e Denise, grande parte dos adolescentes acabam reincidindo no ato infracional. Para Francisco o principal motivo é que não existe ainda uma política pública eficaz de acompanhamento dos egressos.
“Quando estão lá dentro, utilizando a própria linguagem deles, a gente consegue ‘pesar na mente’ deles. Mas quando saem, voltam para a mesma realidade de negação de direitos e violência que estavam inseridos anteriormente. E é muito difícil romper esse ciclo”, observa.
Denise é um exemplo disso, ela relatou que não teve suporte do Estado, somente de um agente que tentou ajudá-la voluntariamente. “A única coisa que a gente ganha são olhares de julgamento e má vontade do Estado em fazer algo pela gente. Lembro que quando levei o papel na escola para me matricular, me olharam com muito desprezo por saberem que eu tinha acabado de sair do sistema. Mas me virei. Quase concluí a faculdade de RH, porém descobri que não era o que eu queria. Atualmente faço curso Técnico em Enfermagem. Trabalho em uma empresa bacana e tenho uma filha de 4 anos, “ diz.
Ravena denomina situações como essa que Denise e os demais egressos vivem como o “estigma de egresso”. “Sou mãe, professora de ciências, pedagoga, estou terminando um mestrado, tenho várias especializações, mas no fim eu sempre sou a egressa, a menina que saiu do CAJE. Ninguém olha para mim como uma profissional. Essa parada me atravessa até hoje”, analisa.
Oportunidades
“A gente vem trabalhando para substituir essa cultura punitiva e policialesca para uma cultura emancipadora e libertária, mas esse é um processo que demanda mais tempo porque ainda está muito enraizada nos profissionais do sistema socioeducativo essa cultura prisional. Esse processo de desconstrução é um pouco demorado”, diz Francisco.
Para Ravena a metodologia de sucesso para evitar a reincidência e ter uma reconstrução de trajetórias é a oportunidade. “Reconstruir histórias é processo difícil e pra quem nunca teve acesso a nada e oportunidades negadas ao longo da vida se torna um desafio maior. O primeiro passo é dar oportunidade de profissionalização, mercado de trabalho, educação, cultura, porque dessa forma, se reconhece e valoriza quem está na trincheira para mudar de vida”.
Francisco e Luana, pedagogos do Sistema Socioeducativo, ao lamentar que o SINASE mesmo após 11 anos de implementação esteja longe de ser executado na íntegra, analisam que muitas pessoas criticam a Lei e o Estatuto da Criança e do Adolescente, mas não compreendem que ambos ainda não são cumpridos na prática, ao invés de as leis serem falhas.
“Também não é possível falar em ressocialização sem discutir o projeto de sociedade que temos e que queremos construir. A ressocialização deve ser um processo bem mais amplo, por isso não acreditamos apenas no encarceramento seco como via de transformação ou reparação de danos. Ressocializar exige discutir o tipo de sociedade para a qual se deseja reconduzir estes adolescentes. Portanto, educação, trabalho, profissionalização, esporte, cultura e lazer, eixos socioeducativos previstos no Sinase, são temas essenciais”, observa a pedagoga Luana Euzébia.
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Edição: Flávia Quirino