Se por um lado obras foram depredadas e prédios invadidos, por outro há resistência política
Amigo Di Cavalcanti
A hora é grave e
inconstante.
Tudo aquilo que prezamos
O povo, a arte, a cultura
Vemos sendo desfigurado
Pelos homens do passado
Que por terror ao futuro
Optaram pela tortura.
Vinicius de Moraes
No dia 8 de dezembro de 2023 milhares de pessoas, em nome de um patriotismo forjado na mentira e no ódio, invadiram os prédios mais representativos da democracia brasileira como se fosse um ato heroico. Maioria branca. Pouca gente coloriu o ato.
Destruição foi a palavra de ordem, assim como foi a tônica do desgoverno que os inspirou e os mobilizou e foi, se não direta, politicamente, com certeza, responsável.
O estrago foi condizente com o governo Bolsonaro e com o desprezo com que tratou a cultura, a arte, a história, a educação, a memória e a ciência. No entanto, naquele dia a dose foi cavalar. A depredação foi assustadora, advinda de uma manifestação anunciada como pacífica, sabendo-se de antemão que não seria.
Não é o caso de entrar no mérito da (des)segurança planejada. Tudo ficou óbvio demais e demanda agora investigação, responsabilização e reparação, inclusive de danos irreparáveis.
Vamos ao patriotismo que, por si só, tem uma conotação excludente, uma vez que delimita o “amor” e a devoção a uma ideia chamada de nação. No entanto, com o pretexto de um patriotismo radical foram depredados e roubados bens de valor inestimável que pertencem a todo o povo brasileiro. Aliás, é preciso lembrar que Brasília é Patrimônio Cultural da Humanidade, portanto, de alguma maneira, toda a população mundial foi atingida.
O grupo bolsonarista tem como únicos bens coletivos as cores verde e amarela, a bandeira e a camisa da seleção brasileira de futebol. Tudo o que não for verde e amarelo é desprezível.
Esse mesmo grupo patriota imita os alucinados estadunidenses inconformados com o resultado das eleições. Nada estranho para quem tem o Bolsonaro como mito que, além de fazer continência para a bandeira daquele país, declarou amor ao autoritário da vez.
São os bens culturais, sejam materiais ou imateriais, que traçam os encontros entre nós e nossas ancestralidades, entre nós e as futuras gerações, entre nós e outros povos. É importante compreender dimensão coletiva do conceito, portanto a sua diversidade – “O Brasil não é só verde, anil e amarelo...” (Marisa Monte e Seo Zé).
O espetáculo de horrores mostrou o desprezo pelos bens públicos e pela história. Cada objeto destruído naquele ato de vandalismo tem esforço de muita gente, de artistas, artesões/ãs e de outros povos e até de outros tempos. Além dos/das autores/as das obras, há muitas pessoas que não as assinam, mas suaram e sangraram pelo caminho (termo usado pelo Emicida no documentário AMARELO) e contribuíram para que todos esses bens chegassem a nós. Os candangos que construíram Brasília, por exemplo, foram duramente feridos naquele fatídico domingo. Enfim, a barbárie destrói a humanidade, a deles e a nossa.
Tudo coerente com o ex-governo cuja Secretária Especial da Cultura ressaltou no seu discurso de posse o pum do palhaço quando estávamos entrando numa pandemia que matou muitos/as artistas e em nenhum momento se dedicou a homenagear ou a decretar luto pelos/as que partiram.
O auge do desdém se deu quando o ex-presidente vetou o Projeto de Lei Paulo Gustavo: “O presidente Jair Bolsonaro vetou o Projeto de Lei Complementar (PLP) 73/21, que repassaria R$ 3,86 bilhões do Fundo Nacional de Cultura (FNC) para fomento de atividades e produtos culturais em razão dos efeitos econômicos e sociais da pandemia de Covid-19” (Agência Câmara de Notícias).
Na ausência de uma política de cultura, a sobrevivência de muitos/as artistas e profissionais da cultura só foi tornada possível por atos de solidariedade.
As religiões baseadas na fé cristã têm por princípio o amor e a solidariedade. Porém, neste momento, ressalta-se um conservadorismo tacanho que serve somente para preservar relações de poder. A fé se junta ao patriotismo atiçando um modo furioso de ser e intensificando um conservadorismo radical; uma situação sobre a qual não se pode questionar – “Deus acima de tudo...”.
Se por um lado obras foram depredadas e prédios invadidos, por outro há resistência política, mas também na cultura que provoca reflexões, instiga, critica, celebra o encontro e evidencia a força coletiva.
O governo Lula reagiu com precisão e habilidade, mostrando ao mundo a que veio. Tratou com a gravidade que o ato merece e convocou os três poderes da república para assumir suas responsabilidades na retomada da normalidade.
Nada no mundo colocará de volta o que foi perdido. Algumas coisas têm remendo, outras não, mas uma coisa é certa: cada caquinho nos lembrará que estamos de volta, agora mais fortes.
:: Leia outros textos deste colunista ::
* Márcia Acioli é assessora política do Inesc.
** Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato - DF.
:: Clique aqui para receber notícias do Brasil de Fato DF no seu Whatsapp ::
Edição: Flávia Quirino