Dados recentes da 1ª Vara da Infância e da Juventude do Distrito Federal (1ª VIJ) indicam que houve aumento e mudança no perfil das adoções no DF. Em 2022, 66 crianças e adolescentes ganharam um novo lar, 7 a mais do registrado no ano anterior. Além disso, houve um incremento, ainda que pequeno, de adoções fora do perfil mais comumente procurado pelas famílias, representadas pelo acolhimento de grupos de irmãos, de jovens com mais de 12 anos e de crianças com alguma deficiência ou problema de saúde grave.
De acordo com o levantamento do órgão, no ano passado, foram adotados um grupo de três e outro de quatro irmãos. Em 2021, nenhum grupo numeroso de irmãos foi acolhido. Além disso, houve um pequeno aumento na adoção de jovens com mais de 12 anos, com três acolhimentos, superando o único de 2021. Também foram acolhidas seis crianças com deficiência ou algum problema de saúde grave.
Segundo Júlia Salvagni, psicóloga e vice-presidente do Aconchego, essa mudança de perfil é reflexo do trabalho intenso de órgãos públicos, organizações da sociedade civil e pessoas que realizam um movimento de diálogo e sensibilização sobre a adoção de crianças de perfis historicamente menos escolhidos.
“Existe uma construção social de que a partir de uma determinada idade, o caráter está formado e, por isso, é mais difícil ou não é possível a adaptação. E um outro mito de que com uma criança pequena você poderia começar uma história do zero. O que é uma inverdade. Tanto a criança pequena, quanto as maiores, e os grupos de irmãos apresentam desafios distintos e a adoção é um processo complexo. Então, uma vez que o tema começou a circular mais e pode-se discutir mais sobre esses mitos e esses gargalos, as pessoas começaram a ter mais informações e paralelamente a se preparar mais”, explica a psicóloga.
A conta não fecha
Atualmente, existem no DF 543 famílias aptas a adotar e 85 crianças à espera de um lar. Ou seja, há cerca de cinco famílias para cada criança que aguarda pela adoção. Isso acontece porque há um desencontro entre o perfil desejado pelos aptos a adotar e a realidade de quem espera ser adotado.
98% das famílias querem adotar crianças com até três anos, 5% acolheriam grupos de irmãos de três irmãos ou mais, e 13% estão abertos a acolher uma criança com deficiência ou graves problemas de saúde. Já dentre os jovens que aguardam para ser acolhidos por uma família adotiva, 92% tem mais de três anos, mais da metade integra um grupo de três irmãos ou mais, e 28% tem alguma deficiência ou problema de saúde grave.
“Houve essa ampliação do perfil, mas a maioria ainda está cadastrada para adotar crianças menores, enfim, com algumas especificidades. Então, você tem uma disparidade entre o perfil das crianças disponíveis e o perfil dos adotantes. Isso é uma questão. Essa mudança, que é uma mudança gradual, que leva um tempo, é uma mudança de paradigma. Ela vem para diminuir essa disparidade. Ela vai diminuir a distância entre os perfis e essa história ‘da conta não fecha’ vai paulatinamente deixar de morar no nosso imaginário social”, afirma Júlia Salvagni.
Em Busca de um Lar
Uma dessas iniciativas que fazem um trabalho de sensibilização quanto à adoção no DF é o “Em Busca de um Lar”. O programa da 1ª VIJ utiliza a ferramenta de busca ativa, isto é, a procura proativa por famílias em condições legais de adotar, para realizar encontros entre crianças e adotantes.
No site do projeto, são apresentados, por meio de matérias e vídeos, os perfis das crianças que esperam por uma família. “A iniciativa de buscar uma família para meninos e meninas com poucas chances de adoção leva em consideração que a exposição de sua imagem é positiva porque aumenta as chances de efetivar o direito à convivência familiar dessas crianças e adolescentes, cujo perfil é preterido pelos adotantes habilitados no cadastro”, explica a organização.
O que desejam as crianças?
Júlia Salvagni também é vice-presidente do Aconchego DF, instituição que realiza trabalho de acolhimento das crianças e de apoio à convivência familiar e comunitária no DF. Dentre as ações realizadas no Aconchego, figura a preparação das crianças que vão ser adotadas e o registro das histórias desses meninos e meninas.
“Esse debate da preparação das crianças e dos adolescentes precisa ser muito ampliado, porque o sucesso das adoções depende desse investimento, que é de parte a parte. Tanto o investimento na família que vai adotar, para aquela esteja consciente, reflexiva dos desafios que vêm, quanto na criança, para que ela possa elaborar o processo de luto da família biológica, para que ela possa entender que a história dela vai ser preservada, que ela vai ser respeitada, que não é um começar do zero”, explica.
A psicóloga fala ainda da importância de também escutar os jovens à espera da adoção quanto ao perfil da família na qual eles almejam ser acolhidos.
“A gente ainda vive em uma sociedade que é muito pautada, muito centrada no discurso e no desejo dos adultos. Pouco se fala sobre o que as crianças desejam. Então, a gente não se questiona muitas vezes: qual é a família que aquela criança deseja? Em que lar que aquele adolescente se imaginou? Isso precisa ser considerado para a construção de um trabalho com esses meninos e meninas, para que isso, lá na frente quando eles estiverem no estágio de convivência, contribua para uma adoção bem sucedida”, esclarece Júlia Salvagni.
'Também nos sentimos afetivamente adotados por todos a nossa volta'
Eugênia Christina, auxiliar administrativa, e seu companheiro Adeir são um dos casais que formaram família a partir da adoção no DF. Além de uma filha consanguínea de 10 anos, Dandara, em 2020, eles acolheram José Miguel, atualmente com três anos.
A mãe relata que, inicialmente, acharam que o perfil não era uma questão muito importante. “Depois entendemos que, como não tínhamos pressa, o perfil seria muito importante sim, inclusive para nos ajudar a compreender que a integração se dava também por causa das nossas escolhas ou por consequência delas”, conta.
Assim, definiram que gostariam de acolher uma criança negra, pois são uma família negra, com idade próxima à da filha, que na época em que iniciaram o processo de adoção ainda estava sendo gestada. Após o nascimento de Dandara, decidiram que tinham preferência por uma criança saudável ou com alguma doença tratável, pois a filha já passava por um tratamento de epilepsia infantil desde os 4 meses de vida.
“Portanto, quaisquer desafios que ultrapassassem esse, poderia ser muito desafiador para nós. Após essas escolhas achávamos que retardaria o tempo de espera. Achávamos que seria muita insensibilidade colocar critérios tão específicos e restritivos. Mas, no final percebemos que todas essas escolhas foram acertadas e importantes para nós. O aspecto racional não superou o emocional e afetivo, pelo contrário, sustentou nossas escolhas, nos fortaleceu em muitos momentos de decisões”, relata Eugenia.
Da inscrição no curso de habilitação para adoção até o recebimento do Termo de Guarda de José Miguel, passaram-se aproximadamente 8 anos.
“Esse longo tempo nos possibilitou amadurecer a nossa ideia, trabalhar o ambiente em termos de espaço físico e conversar com as nossas famílias sobre o assunto. Em diversas ocasiões conversamos com parentes nossos que são pais adotivos, compartilhamos perspectivas”, conta a mãe.
Conforme relata, a chegada de José Miguel na família foi precedida por um "carrossel de sensações muito boas, mas estranhas”. “Difícil de elucidar com a razão, entendemos que as sensações da chegada de alguém, até então desconhecido, mas esperado não deixaria de mobilizar nossos sentidos humanos, espirituais, afetivos e emocionais em grande estilo”.
Eugênia Christina conta que, com a chegada da criança, tiveram muito apoio e acolhimento de familiares e amigos. A família também se sentiu afetivamente adotada por todos a volta, inclusive pelos profissionais de saúde que atenderam José Miguel nas consultas, quando ainda estava em tratamento contra sífilis congênita.
“Por todas essas razões compreendemos que a família que tem um filho adotivo tem uma história única, cheia de situações que só mesmo com a partilha, a vivência, é possível conhecer, e que nossas escolhas determinarão em que medida estamos confortáveis, seguros, abrigados, e, sobretudo, felizes”, compartilha a família.
À espera do encontro
A gestora ambiental Ligia Kawata é uma das pessoas que está em processo de habilitação para adoção no Distrito Federal. Após muita conversa entre ela e o companheiro, eles decidiram iniciar o processo no ano passado. O plano é adotar uma criança e também ter um filho consanguíneo.
“Foi quando eu comecei a perceber o quão esses dois processos são muito parecidos. As incertezas, os medos, as curiosidades, a preocupação que a gente tem de não romantizar esse processo de desejar ser mãe e pai, né? E ao mesmo tempo que a gente tem que lidar com a ansiedade, porque da mesma forma a gente não sabe quando vai ser, nem como vão ser os filhos, e independentemente do meio, a gente vai ter que construir uma relação do zero”, relata Ligia Kawata.
A gestora ambiental conta que livros, sites, podcasts e perfis nas redes sociais que falam sobre adoção têm a ajudado muito no processo de preparação. “Eles ajudam a desmistificar a adoção, que pra maioria das pessoas soa estranha, porque no final das contas, desafia a noção de família tradicional e hereditária muito enraizada na sociedade”, relata.
Ela afirma que a preparação das famílias e dos amigos também é muito importante. “Recentemente uma amiga me falou: ‘nossa já pensou que seu filho já pode ter nascido e só tá esperando esse encontro com vocês?”. E é muito legal imaginar isso”.
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Edição: Flávia Quirino