As ruas devem ser o palco para defesa e aprofundamento da democracia
O ano de 2023 começou repleto de emoções. Uma mistura de sentimentos de afetos e desafetos. A posse popular do presidente Lula, recheada de simbolismos e ineditismos, parecia significar a superação de um período marcado pela louvação das armas e da mentira. Todavia, uma semana após a grandiosa manifestação popular, o que se viu foi o terror de ações criminosas contra os símbolos da República.
A destruição das sedes dos Três Poderes da República, realizada pelos fanáticos integrantes da extrema direita e criminosos seguidores do bolsonarismo, foi a demonstração de que o período da naturalização da violência ainda não foi superado. A democracia louvada e vivida na posse de Lula ainda não se impôs totalmente ao desejo de autoritarismo de Bolsonaro e sua claque.
É possível crer que nem o mais arguto historiador ou analista jamais tenha imaginado que no início do terceiro milênio da era cristã, após tantos avanços científicos e tecnológicos, o povo brasileiro se encontraria repartido entre aceitação ou negação da ciência ou que estaria considerando a necessidade de realizar uma cruzada religiosa cristã (sem Jesus Cristo) contra a civilização.
No Brasil dos derrotados, a realidade é substituída pela narrativa. Ou seja, a realidade perde importância diante do discurso. Fatos são negados, por mais graves que sejam. Em lugar dos fatos, as realidades virtuais criadas e disseminadas nas redes sociais tornam-se verdadeiras. Nesta perspectiva, as consciências são sequestradas e os indivíduos, desprovidos da percepção da realidade concreta e objetiva, transformam-se em meros objetos de manipulação na mão dos construtores das falsas verdades.
Como zumbis caminham movidos pelos instintos mais primitivos e tentam impor ao País o esvaziamento das consciências e dos sentimentos. Indivíduos que se alimentam de mentiras e potencializam o ódio como organizador de ações e discursos, sendo retroalimentados nas bolhas das redes sociais e grupos de conversa. Bolhas que funcionam como células em processo de mitose, o que garante o alcance de cada vez mais indivíduos, imprimindo um ritmo acelerado de criação de novas bolhas semelhantes, como uma espécie de regeneração constante da doença que corrói o tecido social constituinte da democracia brasileira.
Bolhas de indivíduos alimentados pela mentira, negação da realidade, esvaziados de empatia e razoabilidade, desenvolvem percepções deturpadas em relação a tragédias e conceitos. Neste cenário qualquer discurso falacioso tem roupagem de verdade. Por isso, a tragédia que ocorreu com os Yanomamis e ocorreu na pandemia da covid-19 com a morte evitável de milhares de pessoas não causou indignação ou solidariedade, assim como teorias conspiratórias em relação às urnas eleitorais foram aceitas como plausíveis e até normais.
A concretude deste esvaziamento de sentimentos como empatia, alteridade, e obscurecimento da razão, verificou-se em ações de movimentos individuais e coletivos organizados e, relativamente, bem orientados. Provocou ameaças virtuais, intimidações pessoais, agressões físicas, assassinatos e ações individualizadas e coletivas incentivadas a partir das bolhas alimentadas, muitas vezes, pelos discursos ou omissões do ex-presidente e de diversas autoridades que compunham o seu governo.
Não obstante, à medida em que essas ações se multiplicavam livremente, esses indivíduos que se identificam com fascismo, também se organizavam coletivamente, de tal forma que constituíram acampamentos nas imediações de áreas de segurança nacional, com proteção e participação ativa de militares e discursos favoráveis ao ex-presidente da extrema direita. Esses que nutriram o sentimento de golpe contra a democracia e abrigam indivíduos que protagonizaram atos de vandalismo contra a democracia, no dia 12 de dezembro de 2022, no centro de Brasília; tentativa de ato terrorista, no dia 24 de dezembro do ano passado, com a colocação de uma bomba no Aeroporto de Brasília; e, finalmente, atos de terror e destruição realizados contra as sedes dos Três Poderes da República no dia 8 de janeiro deste ano.
Ações que indicam que a força das bolhas antidemocráticas ainda é muito grande e impõe aos setores democráticos a necessidade de muita assertividade na elaboração e execução de políticas públicas que melhorem as condições econômica e social das pessoas e que organize, democraticamente, com responsabilização os diversos meios de comunicação e redes sociais.
É preciso garantir a continuidade da democracia para que as pautas de interesse da classe trabalhadora e movimentos sociais tenham condições de concretização. As ruas devem ser o palco para defesa e aprofundamento da democracia, para rechaçar tentativas golpistas e para assegurar o avanço das reivindicações da classe trabalhadora e dos segmentos tradicionalmente marginalizados.
Ao longo dos últimos 6 anos, desde o golpe de 2016, a maioria dos trabalhadores e trabalhadoras dos setores público e privado, apesar das lutas, viu os direitos historicamente conquistados serem retirados e os salários reduzidos. O desemprego avançou e o trabalho sofreu profunda desvalorização e precarização. Enquanto no setor privado os direitos previstos na Consolidação da Leis do Trabalho (CLT) foram extintos e substituídos pelo discurso do empreendedorismo uberizado, no setor público, avançou o processo de terceirização, contratação temporária precária e, com isso, a instalação da uberização dos serviços públicos.
O ex-ministro da Economia, o banqueiro Paulo Guedes, ameaçou e cumpriu a advertência de “colocar a granada no bolso do servidor”, estabelecendo uma redução drástica e completamente inconstitucional, em muitos setores da União, no número de servidores(as) efetivos(as) concursados(as), congelando salários e reduzindo investimentos. A dinâmica do fascismo na política e na cultura foi adotada na economia com a prática neoliberal da pilhagem, espoliação, usurpação e todo tipo de apropriação indevida e criminosa do patrimônio e riquezas nacionais em todos os setores.
Daí que, assim como Guedes, o ex-ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, em plena pandemia do novo coronavírus, diante da morte evitável de milhares de indivíduos, acelerou o desmatamento da Amazônia e de outras regiões do País ricas em minerais preciosos, e liberou o garimpo ilegal, fazendo a boiada passar despercebida destruindo tudo a seu redor.
Além desses ministros, as ações dos ministros da educação focadas na criminalização de profissionais do magistério por conta da liberdade de cátedra, a falta de maiores investimentos durante a pandemia e o contingenciamento de recursos já reduzidos foram as principais marcas das atitudes dos quatro ministros indicados por Bolsonaro.
Na saúde, milhares de mortes evitáveis de covid-19 foi o principal resultado da gestão do ex-ministro da Saúde, general Eduardo Pazzuelo, o que demonstra o descaso do governo anterior em relação à vida. Era o governo da morte: o extermínio planejado do povo Yanomami é a prova cabal desse projeto de destruição do outro. Enfim, o governo passado, em praticamente todos os ministérios, deixou um legado de destruição, mortes, incompetência e usurpação das riquezas, patrimônios e recursos financeiros públicos. Transformaram o Poder Executivo em balcão de negócios ilegais.
A consequência desse período nebuloso da nossa história pode ser a sua superação, desde que o terrorismo do 8 de janeiro seja menor que a posse popular do 1º de janeiro de 2023. Assim, é necessário que a sociedade civil, na qual classe trabalhadora está inserida, tenha disposição para repudiar e enfrentar qualquer ataque à democracia e à subtração de direitos trabalhistas, sociais e humanos. E volte a valorizar o direito a vida e a empatia.
O governo Lula foi eleito e precisará se articular com um grupo que a maioria pensa, de forma ideológica, contrária ao pensamento do Partido dos Trabalhadores, que vai da esquerda à direita do espectro partidário nacional. Esse cenário impõe a compreensão de que, no governo Lula, o projeto de sociedade estará em constante disputa. É um governo com contradições explícitas de interesses entre os diversos segmentos sociais, contudo, respeitando a institucionalidade democrática burguesa com todos os seus limites e distante do esvaziamento democrático alicerçado pelo governo fascista anterior.
No cenário atual, de contradições, a classe trabalhadora precisa estar atenta, organizada e com disposição para ocupar as ruas, as narrativas e redes sociais para construir uma pauta que contemple trabalhadores e trabalhadoras e fazer prevalecer os interesses de todos e não somente dos setores atrasados, escravagistas, conservadores e capitalistas.
Portanto, somente a organização das diversas categorias em suas entidades sindicais, sociais e populares e a consciência de classe conseguirá sustentar a democracia renascida com a eleição de Lula, com passos rumo à consolidação e ao aprofundamento dessa democracia duramente reconquistadas nos anos 1980, fazendo prevalecer a soberania popular e nacional sobre os interesses das atrasadas e enferrujadas classes dominantes brasileiras a pauta da classe trabalhadora e dos diversos movimentos sociais emancipatórios.
Começou 2023 com esperança e que este seja um verbo exercitado, cotidianamente, na consolidação e no aprofundamento da democracia.
*Cleber Soares, professor da rede pública de ensino do Distrito Federal e diretor do Sinpro-DF.
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*Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato - DF.
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Edição: Flávia Quirino