Distrito Federal

Segurança alimentar

'A fome é um flagelo dramático para o conjunto do país', afirma pesquisadora

Elisabetta Recine falou sobre a retomada do Consea, que garante a participação popular no desenho de políticas públicas

Brasil de Fato | Brasília (DF) |
Baixo orçamento, herdado do governo Bolsonaro, será um dos grandes desafios para se pensar o combate à fome no Brasil - Agência Brasil

Em 2019, o primeiro ato de Jair Bolsonaro enquanto presidente da República foi extinguir o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), o que foi um indício de como seu governo trataria a questão. Pouco depois, Bolsonaro declarou que não existia fome no Brasil. 

Os dados da pesquisa realizada pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede PENSSAN), entre novembro de 2021 e abril de 2022, mostraram um cenário muito diferente do delírio bolsonarista. Segundo o 2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil (Vigisan), mais de 33 milhões de pessoas estão em situação de insegurança alimentar grave no Brasil.

No primeiro dia de mandato, em janeiro deste ano, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) assinou um decreto que estabeleceu a recriação do Consea, como forma de demonstrar o compromisso do atual governo com a reestruturação de uma política de combate à fome.

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O Conselho deve voltar a atuar em março deste ano. O baixo orçamento, herdado do governo Bolsonaro, será um dos grandes desafios para se pensar o combate à fome no Brasil.

O Brasil de Fato DF conversou com Elisabetta Recine, professora do departamento de Nutrição da Universidade de Brasília (UnB) e integrante da Conferência Popular por Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional a respeito do assunto. Recine foi presidenta do Consea de 2017 a 2019, quando foi extinto. Atualmente, ela é cotada para reassumir o cargo a partir de março. 

A professora aponta que, embora negligenciado pelo governo nos últimos seis anos, o tema da alimentação nunca deixou de ser discutido pela sociedade civil e por pesquisadores. Além disso, ela avalia que a fome é um “flagelo muito dramático para as pessoas que vivem ele cotidianamente, mas ele é um flagelo dramático para o conjunto do país”.

O Brasil viveu um conjunto de retrocessos nos últimos anos, principalmente no governo Bolsonaro, em vários campos, sobretudo no debate e nas políticas de segurança alimentar. Como você avalia esse retorno do debate da alimentação como elemento estratégico para o país?

Se nós recuperarmos essa agenda e como ela tem sido abordada e debatida, acho que a gente pode concluir que, na verdade, ela nunca saiu de discussão. Pode ser que ela não tenha tido, em alguns momentos, por exemplo, visibilidade na mídia, principalmente na mídia de grande massa, nos veículos mais tradicionais. E certamente não teve prioridade no conjunto das políticas públicas desenvolvidas pelo governo federal, eu posso dizer nos últimos seis anos, a partir de 2016, principalmente.

Mas a questão em si dos desafios em relação à garantia de uma alimentação saudável para a população sempre esteve presente no âmbito da sociedade civil e também de pesquisadores que estudam esse tema. Os dados, por exemplo, da elevação do aumento da pobreza a partir da crise de 2016, sempre indicaram que a fome estaria voltando, porque há uma relação direta entre pobreza e fome, extrema pobreza e fome. Grande parte do orçamento das famílias que têm menor renda é destinada à alimentação. Então, quanto menor renda as famílias têm, menos elas podem dedicar à alimentação. 

Agora, o retorno dessa agenda, a partir dos números inquestionáveis do aumento de insegurança alimentar na nossa população, é um retorno fundamental.

O país que tem mais da metade da sua população com algum nível de insegurança alimentar e mais de 30 milhões de pessoas em situação de fome é um país que não tem as bases mínimas para se sustentar, para recuperar sua economia, para recriar as bases de uma convivência social, as bases de recuperação de valores, etc.

A fome é um flagelo muito dramático para as pessoas que vivem ele cotidianamente, mas ele é um flagelo dramático para o conjunto do país. Porque é como se fossem grandes correntes que impedem que a gente se desenvolva plenamente, que a gente tenha uma vida digna, que as pessoas possam desenvolver os seus potenciais e, com isso, contribuir para o país viver seu potencial. Não mais no futuro, mas no presente. Então, é mais do que bem-vindo e, para além de bem-vindo, é urgente e necessário.

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Frente aos novos desafios e a atual configuração do Governo, qual o papel da participação popular e dos Conselhos para a garantia da produção e o acesso a uma alimentação adequada e saudável?

A alimentação é resultado de um conjunto de fatores, tanto sociais, ambientais e logicamente também individuais. Agora, a alimentação enquanto tema de política pública, enquanto bem comum, enquanto direito humano, depende, para que seja disponível, acessível e saudável, produzida de maneira sustentável, de um olhar muito detalhado. Tanto das diferentes realidades, quanto também das diferentes necessidades e, portanto, aliando realidades e necessidades, você precisa de estratégias de políticas públicas que abranjam o conjunto dos problemas e necessidades, mas não é exatamente a mesma estratégia que é viável e aplicável e efetiva para todas as situações e para todas as comunidades. 

A participação da sociedade civil em espaços institucionais traz a possibilidade do governo, do Estado, dos gestores de políticas públicas  acessarem essa diversidade de realidades e de necessidades, e para além disso, as diferentes propostas e práticas que estão em desenvolvimento e tendo resultados adequados nessa diversidade.

Muitos dos programas públicos, por exemplo, que tiveram resultados importantes, como o Programa de Aquisição de Alimentos ou o Programa de Cisternas no Semiárido, são programas que vêm de práticas da sociedade civil que inspiraram ações que viraram políticas. Então, a sociedade civil tem esse papel de levar pra dentro do Estado, que tem uma estrutura muitas vezes rígida e que não consegue acessar a realidade de uma maneira mais adequada. A sociedade civil traz isso pra dentro do pensar e do fazer política pública. 

Além disso, a participação da sociedade civil sinaliza a urgência e emergência das ações. Ela faz com que o ritmo da ação pública seja diferente do ritmo muitas vezes ditado pela rotina, pela inércia e cultura institucional.  

Esse espaço de articulação e de interlocução que coloca, olhando para as diferentes faces, as diferentes determinações de um mesmo problema e os diferentes atores, tanto dos governos quanto da sociedade civil, faz com que a capacidade de diagnóstico e de planejamento e de implementação seja muito mais qualificada. Então, é um serviço que a sociedade civil faz ao Estado brasileiro e não a um governo, mas ao Estado brasileiro, para que as suas políticas públicas realmente alcancem os objetivos que precisam ser alcançados.


Elisabetta Recine deve assumir a presidência do Consea em março / Foto: Secom/UnB

Em relação ao Consea, qual papel ele terá no Governo Federal? Haverá mudanças em relação às gestões anteriores do PT?

O Consea é um conselho extremamente diversificado, do ponto de vista da representação da sociedade civil e também da representação do governo. A compreensão que nós temos, o conceito que nós temos de segurança alimentar e nutricional, que foi aprovado na conferência nacional de 2004, é um conceito que traz todas essas dimensões.

A segurança alimentar e nutricional, antes de mais nada, é um direito, é a ferramenta para que a gente realize o direito humano à alimentação adequada para todas as pessoas. E ela abrange desde o acesso à terra, ao tipo de semente utilizado, as relações de trabalho para produção. O que é plantado, como é plantado, onde é plantado, como esse alimento é transportado e comercializado.

Como as pessoas tem ou não tem acesso a esse alimento, o quanto esse alimento é coerente com as práticas e cultura alimentar, até as consequências da alimentação na saúde. E transversalmente a tudo isso, um elemento que é muito importante nesse momento: como toda essa articulação de processos e sujeitos impacta do ponto de vista ambiental, social e econômico. Então, a sustentabilidade é um elemento que perpassa todo esse processo. Não apenas a sustentabilidade alimentar, que hoje é um tema absolutamente urgente, prioritário, mas também a sustentabilidade social e econômica. 

À medida que nós atuamos tendo esse conceito como referência, a representação do governo é uma representação extremamente diversificada em termos de setores. Temos desde aqueles setores que são obviamente mais vinculados ao tema, como agricultura, desenvolvimento agrário, educação, saúde, desenvolvimento social, etc, mas também Ministérios, como por exemplo das Cidades, que à primeira vista as pessoas podem falar ‘bom, mas o que tem a ver Ministério das Cidades com tudo isso?’ Tem muito a ver.

Tanto como a cidade se organiza, por exemplo, para estabelecer um sistema de abastecimento de alimentos. Como é a distribuição territorial das cidades em relação ao o que é urbano e ao que é rural, e qual a interlocução e articulação entre o rural e o urbano? Tem o tema da agricultura urbana. Tem os espaços onde as pessoas possam desenvolver atividades relacionadas à alimentação. 

Então, temos um conjunto de Ministérios que obviamente as pessoas reconhecem como tendo relação com essa agenda, mas também outros onde a gente precisa deixar mais explicito a relação que eles têm com a alimentação. E, portanto, é importantíssimo que esses setores estejam dentro do Consea para que esse diálogo seja aprofundado e eles reconheçam esse papel nessa agenda. 

Isso necessariamente rebate na representação da sociedade civil, que tem uma diversidade que dialoga com a amplitude do conceito. Então, temos trabalhadores, agricultura familiar, agroecologia, povos de comunidades tradicionais, povos indígenas e mulheres indígenas, mulheres camponesas. Mas também temos a vertente de quem atua no direito a uma alimentação adequada, na defesa dos direitos, na defesa das crianças, na defesa de um consumo saudável, movimentos urbanos, etc.

Então, é esse diálogo entre essa diversidade que vai dar a capacidade do Conselho de tanto acompanhar o que está sendo implementado de novo em relação a essa agenda, mas também propor ações novas, monitorar essas ações. E realizar a sexta Conferência de Segurança Alimentar e Nutricional, para que a gente tenha as bases para o governo elaborar o nosso terceiro Plano Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional.

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Sabemos que há tanto do ponto de vista ideológico quanto do ponto de vista político, projetos distintos entre o Governo Federal e o Governo do Distrito Federal, como você avalia essas relações e como isso pode afetar a garantia da segurança alimentar e nutricional para a população do Distrito Federal?

Eu acho que a reinstalação, não só do Consea, mas também da Câmara Interministerial de Segurança Alimentar e Nutricional, tem um potencial muito grande de gerar um movimento virtuoso e positivo em toda a relação interfederativa.

A extinção do Consea nacional não levou à extinção dos Conseas estaduais e do Distrito Federal. Eles continuaram atuando, e tiveram um papel muito importante de sustentação dessa agenda dentro dos governos estaduais e do DF. Realizaram e acompanharam programas, resistiram para recuperar ações que estavam em risco. Muitos deles realizaram conferências estaduais para incidir na política local.

Isso é muito importante, porque a partir do momento em que o Consea nacional volta todo esse diálogo e interlocução, esse fluxo de informações e de compartilhamento de estratégias será essencial para que também esse coletivo aprenda com as suas experiências, com seus desafios, etc. Isso tudo vai ser certamente fortalecido. 

E a retomada da Câmara Interministerial de Segurança Alimentar (Caisan), além de fazer articulação no nível federal desses diferentes setores, assume também a responsabilidade de retomar a implementação do diálogo interfederativo, com as Câmaras Intersetoriais dos estados e do DF. Então, da mesma maneira que o Consea nacional vai contribuir para o aprofundamento e ampliação do diálogo entre Conseas, ele também contribui pro diálogo entre os Conseas e as Câmaras locais.

Então, há um processo de contribuição para que o conjunto das políticas estaduais possam ser aprimoradas. E eu acredito que essa tendência, ou essa onda de aprimoramento, é uma onda que pode contribuir para a qualificação e ampliação das ações no Distrito Federal também.

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Edição: Flávia Quirino