Após quatro anos de implementação da militarização nas escolas públicas do Distrito Federal, especialistas e entidades criticam o modelo e apostam na desaceleração ou fim do projeto. Os índices que permitem avaliar o desempenho dos alunos ainda não foram apresentados e há um aumento nas ocorrências registradas no ambiente escolar das instituições cívico-militares, o que contraria a justificativa utilizada para instaurar a gestão compartilhada.
“Ainda não há oficialmente um retorno da Secretaria de Educação do Distrito Federal (SEEDF) sobre o desempenho pedagógico de alunos e alunas que estão inseridos no sistema da militarização das escolas. Quanto à questão da violência, este sistema já demonstrou ineficiência em diminuir os índices de casos. Segundo levantamento realizado pela Promotoria de Justiça de Defesa da Educação (Proeduc), a média de atos infracionais dentro das escolas cívico-militares dobrou entre 2019, quando começou o programa, e 2022”, explica a professora e diretora do Sindicato dos Professores do DF (Sinpro-DF), Márcia Gilda.
A “quartelização das escolas” é criticada por diminuir a democracia das instituições de ensino e transformá-las em um ambiente de medo e intimidação. Especialistas evidenciam que, em nome da disciplina, crianças e adolescentes têm a autonomia e o desenvolvimento saudável da identidade comprometidos pela repressão do pensamento crítico.
“A militarização muda completamente a dinâmica do espaço escolar, que é de movimento, debates e construção do protagonismo juvenil, de desenvolvimento do pertencimento racial e de gênero, uma vez que traz uma série de normas advindas de quartéis, onde a palavra de ordem é obedecer, e o comportamento e a apresentação de alunos e alunas são padronizados, ignorando a sua individualidade e sua construção enquanto pessoa. A militarização ignora o contexto em que a escola está inserida, seu aspecto socioeconômico e cultural”, afirma Márcia Gilda.
A expectativa de entidades ligadas à educação, como o Sinpro-DF, é de que o avanço do projeto esteja chegando ao fim, principalmente após a eleição de Lula. No primeiro dia de governo, o Ministério da Educação (MEC), agora chefiado por Camilo Santana (PT), extinguiu a diretoria de escolas cívico-militares da pasta, criada durante a gestão Bolsonaro para fomentar a militarização do ensino público. Anteriormente, em maio do ano passado, o Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT) revogou nota técnica que tornava legal a implementação da gestão compartilhada nas escolas públicas do DF.
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Gestão compartilhada
Implementado em 2019, durante o primeiro mandato do governador Ibaneis Rocha (MDB) e sob forte pressão da oposição, o projeto de militarização das escolas prevê a gestão compartilhada entre a Secretaria de Educação do DF (SEEDF), responsável pela administração pedagógica da instituição, e a Polícia Militar do DF (PMDF), a quem cabe a gestão da disciplina.
A portaria estabelece ainda que as duas gestões estão no mesmo nível hierárquico e que são autônomas, “não estando condicionadas à aprovação da outra”, mas que as decisões devem ser “levadas à submissão” da outra parte, pelo “dever de consideração”.
O texto, bastante genérico, não explicita o que é não estar condicionado, mas dever consideração. Segundo especialistas, isso significa, na prática, que a atuação dos agentes militares nas escolas não passa por crivos e avaliações dos gestores pedagógicos.
Segundo dados da Secretaria de Educação, divulgados pela Agência Brasília, funcionam atualmente no DF 15 escolas cívico-militares. Outras duas instituições de ensino estão em negociação para aderir ao modelo.
Desempenho
O projeto de gestão compartilhada das escolas cívico-militares foi implementado com a justificativa de que a disciplina militar diminuiria a violência, melhorando o desempenho dos alunos. Quatro anos após o início da militarização do ensino, ainda não foram divulgados dados que comprovem essa melhora.
No despacho de maio de 2022 em que o MPDFT revogou a legalidade da gestão compartilhada, o órgão apontou que transcorridos três anos desde o início da implementação do projeto, não foi apresentada à Secretaria de Educação o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) das unidades participantes, “tampouco o índice de evasão escolar, índice de aprovação/reprovação, número de pedidos de transferências, entre outras informações requisitadas pelo Ministério Público, a fim de demonstrar a melhoria na qualidade do ensino”.
Ainda de acordo com o documento, a adoção de política autoritária em escolas públicas “é incompatível com os princípios que regem o Estado brasileiro e configura verdadeiro retrocesso social”.
Em pesquisa de dissertação de mestrado “Escolas cívico-militares do distrito federal, desempenho, disciplina e violência: a visão dos atores da comunidade escolar”, o professor Antonio Eustáquio Ribeiro demonstra que, embora o período pesquisado possa ser considerado pequeno (três anos), já é possível ter algumas indicações de que não houve elevação no desempenho escolar das instituições militarizadas.
“Os dados das escolas que compuseram o projeto piloto (CED 01 da Estrutural, CED 03 de Sobradinho, CED 07 de Ceilândia e CED 308 do Recanto das Emas), iniciado no ano letivo de 2019, a partir dos resultados do ENEM, SAEB e dados das próprias escolas, não evidenciam isto, apresentando um comportamento muito semelhante ao que havia anteriormente, ou até ligeiramente pior”, afirmou o pesquisador em entrevista ao Sinpro-DF.
Cultura de paz?
De acordo com a Portaria Conjunta nº 1, de 31 de janeiro de 2019, o projeto entre a Secretaria de Estado de Educação e a Secretaria de Estado de Segurança Pública previa o enfrentamento da violência no ambiente escolar, a promoção de uma cultura de paz e o pleno exercício da cidadania.
Dados apresentados pela Proeduc, entretanto, contrariam essa afirmação. De acordo com a Promotoria, em 2019, 199 ocorrências nas escolas cívico-militares foram reportadas à Delegacia da Criança e do Adolescente (DCA), o que, considerando o ano letivo de 200 dias de aula, significa um conflito a cada 48 horas. Em 2022, o número dobrou.
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Intimidação e censura
As escolas militarizadas do DF também têm enfrentado episódios recorrentes de intimidação e censura por parte dos policiais.
“Diversos militares, treinados e acostumados a um ambiente em que lidam efetivamente com violência real, acabaram por protagonizar episódios violentos contra os estudantes e até professores e gestores, o que é o oposto do que deve nortear uma escola fraterna, inclusiva e emancipadora”, avalia Antonio Eustáquio.
O Centro Educacional 01 (CED 01), localizado na Cidade Estrutural, foi umas das primeiras escolas de Brasília a adotar gestão escolar híbrida. Em novembro de 2021, estudantes e a vice-diretora da unidade, Luciana Martins, foram censurados devido a uma exposição realizada na escola sobre o dia da Consciência Negra, em que alguns trabalhos mostravam textos e charges que retratavam a violência policial.
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Luciana Martins foi exonerada do cargo de vice-diretora, o que gerou protestos dos alunos. Durante manifestação contrária à exoneração, o sargento da Polícia Militar do Distrito Federal e monitor disciplinar da escola, Frederico Nicurgo de Oliveira, ameaçou dois estudantes do CED 01. O Policial, flagrado em vídeo gravado por um estudante, intimidou os jovens com ameaças de agressão.
No final de fevereiro deste ano, uma adolescente de 14 anos que estuda em uma escola cívico-militar de Sobradinho protagonizou um caso de intolerância religiosa contra credos de matriz-africana. A aluna foi barrada na escola por usar um fio de conta.
Adepta da Umbanda, a menina estava usando o símbolo religioso e foi repreendida por um policial militar que atua na unidade de ensino. O caso foi denunciado pelo sacerdote Leandro Mota Pereira, conhecido como Pai Leandro de Oxossi, que foi acionado pela vítima e foi até a escola conversar com a direção. Segundo ele, um dos policiais militares o destratou durante a reunião.
Segundo a professora Márcia Gilda, o ambiente escolar cívico-militar é mais propício a esse tipo de ocorrência, pois “há regras para a apresentação pessoal dos alunos/as".
“Cabelos curtos para meninos, cabelos amarrados em coques para as meninas e apenas um pequeno brinco. Não há espaço para cabelos pintados, piercings, colares e pulseiras. O colar usado pela aluna, não tem o objetivo de ser um adereço, um enfeite, ele representa uma proteção e tem um significado importante para a comunidade que pratica as religiões de matrizes africanas’, explica.
Disciplina dos corpos
As escolas públicas que passaram pelo processo de militarização estão localizadas nas periferias do DF. De acordo com o pesquisador Antonio Eustáquio, essa concentração territorial da militarização do ensino demonstra que o projeto é uma tentativa de disciplinar corpos pobres e torná-los sujeitos passivos e obedientes.
“Eu creio que o que se pretende é, utilizando o conceito de Foucault sobre a disciplina dos corpos, buscar um adestramento, uma subjugação dos setores da sociedade que são, invariavelmente, considerados inferiores pelas classes dominantes, ou seja, os pobres. Isto se acomoda na visão dominante de que aos pobres deve ser destinada uma escola que os torne produtivos para serem empregados passivos, sem capacidade crítica de questionamentos, tal qual o que foi feito na ditadura civil/militar de 1964, que buscou suprimir qualquer capacidade de questionamento”, afirma.
Controle social
Antes de ser implementado, o modelo de gestão compartilhada é apresentado às instituições de ensino. Caso haja interesse, corpo docente, pais e alunos participam de uma consulta pública para votar a implementação do projeto.
Segundo especialistas, a sociedade vê a militarização como uma forma de controle social, por isso aderem à gestão compartilhada. As famílias têm a falsa expectativa de que a presença da polícia fortalecerá a disciplina, diminuindo a violência.
“Penso que vários fatores levaram a sociedade a apoiar essa proposta: a violência que tem crescido nas cidades, o conservadorismo frente aos inúmeros desafios que tem se apresentado à escola, como o debate de gênero e de raça. É importante observar que a violência não nasce na escola, ela vem de fora para dentro. E é lá fora que a polícia deve atuar, no perímetro que circunda a escola. A escola deve ser plural e respeitar a diversidade que compõe a sociedade como todo”, afirma Márcia Gilda.
De acordo com a professora, o projeto de lei que tentou implementar o "Programa Escola Sem Partido”, embora não tenha sido aprovado, permeou “o imaginário da sociedade, criminalizando professores e professoras e trazendo um sentimento de desconfiança; assim, a polícia seria bem-vinda à escola”.
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Edição: Flávia Quirino