A paisagem urbana de cidades brasileiras denuncia muitos contrastes: há zonas com centros culturais, cinemas, teatros, com muitos aparelhos esportivos, com espaços de lazer e com verde, com parques urbanos, com calçadas cobertas por árvores que colorem até mesmo cidades cinzas como São Paulo. Enquanto outras têm em sua paisagem asfalto, terra, rocha, tijolo e muro, com suspiros espaciais que são exceções que confirmam a regra.
A arborização urbana não é apenas uma questão estética. Estudos recentes apontam que a presença de árvores pode afetar o microclima urbano, aumentando ou amenizando temperaturas e a umidade do ar. Além disso, há evidências de que a composição arbórea de uma região impacta sua capacidade de reter as águas das chuvas, servindo como pequenos reservatórios que contribuem no combate às enchentes.
Por isso, é grave que árvore tenha se tornado um indicador de renda e cor da população de um lugar: a quantidade de verde também reflete a desigualdade social nas cidades.
Em geral, os bairros mais pobres e ocupados majoritariamente por pessoas negras têm menos árvores do que os mais ricos e ocupados por pessoas majoritariamente brancas, o que implica em piores condições ambientais e de saúde para os moradores.
Não é coincidência que as mesmas pessoas que sofrem mais intensamente com a violência urbana, com a falta de acesso a serviços básicos e com o desemprego também sejam as que dispõem de menor qualidade ambiental urbana e estejam mais expostas a riscos e tragédias.
O sofrimento de pessoas negras comove menos, engaja menos, é visto com mais naturalidade e mais facilmente esquecido por quem detém o poder.
O racismo ambiental é um conceito fundamental para compreender o processo urbano brasileiro e a razão pela qual velhos e conhecidos problemas permanecem sem solução.
Há vários fatores que contribuem para esse cenário. Inclusive, o próprio planejamento urbano: historicamente, áreas projetadas para populações pobres são estabelecidas sem levar em conta o conjunto dos serviços urbanos essenciais à vida. Via de regra, a moradia não foi pensada pra muito além do teto, com governos tratando a questão como forma de impedir a ocupação irregular (sobretudo em áreas valorizadas) ou de alavancar a economia a partir da construção civil.
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Ou seja, como problema ou como oportunidade de negócio. Raramente como direito. Assim, mesmo bairros, regiões ou cidades planejadas foram desenvolvidas sem levar em conta uma série de necessidades das populações, como acesso a serviços públicos, áreas de lazer, parques, condições favoráveis para deslocamentos a pé. E, logicamente, árvores, que se relacionam com todas essas necessidades.
Se nas ocupações planejadas pelo poder público é assim, naquelas que derivam de ocupação espontânea da população ou da grilagem o desafio é ainda maior.
No primeiro caso, há ausência de planejamento central com cada ocupante procurando assegurar o seu espaço – e, em geral, não tendo direito a muito mais do que a área inicialmente ocupada por um barraco. Prevalece nessas ocupações traçados irregulares de vielas ou vias estreitas, cercadas por pequenos lotes.
Embora aparentemente sem ordem, esse tipo de ocupação produz, por vezes, configurações urbanas com notável articulação entre partes, desenhos que se adequam às comunidades e produzem áreas de encontro, comércio e convivência, normalmente ligadas a corredores de trânsito central. Ainda assim, a busca pela maximização de aproveitamento do espaço pela demanda material da moradia faz com que prevaleça uma paisagem com poucas espaços para além dos pequenos lotes.
Já nas ocupações derivadas da grilagem, é possível ver um traçado mais regular, aparentemente mais ordenado, mas orientado pelo interesse de grileiros de transformar a maior proporção possível da área em lotes para serem comercializados. O resultado é um amontoado de pequenos lotes, comumente sem essas áreas de convivência e trânsito central que se formam nos lugares ocupados de maneira não centralizada.
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Antes de existir um assentamento popular sem verde – seja planejado pelo governo, ocupado diretamente pela população ou fruto de grilagem – existiu família sem teto, existiu família sem capacidade de arcar com o aluguel, existiu família morando de favor.
Responsabilizar a população pela ausência de árvores em um território é tão injusto quanto responsabilizar os ocupantes de encostas pelo risco que correm: na ausência da garantia do acesso a moradia digna e do direito pleno à cidade, as pessoas ocupam, moram e vivem como podem, procuram se estabelecer da melhor maneira possível dentro das possibilidades que possuem.
O que faz com que bairros ricos tenham mais árvores não é a disposição da população local em plantar e cuidar, mas a estrutura social que se reflete nas cidades, que concentra os ônus e os bônus urbanos.
“Ora, mas basta os moradores plantarem árvores”, muita gente pode pensar. Infelizmente a solução não é tão simples. Esses fatores históricos geram a impossibilidade espacial de arborizar áreas já ocupadas sem que isso impacte diretamente muitos lotes e vidas. A solução não pode gerar o próprio problema: remover pessoas, falhar na política habitacional, gerar novas ocupações sem garantia de direitos. Além disso, nem toda árvore pode ser plantada em todo lugar. O plantio indevido pode acarretar sérios problemas: o rompimento de encanamentos ou fiação, o desnivelamento do solo, o impacto às espécies vegetais e animais nativas.
A raiz e a solução do problema depende da ação do poder público para planejar e monitorar a qualidade urbanística dessas áreas de forma democrática, com ampla participação e tendo como objetivo não a otimização de lucros ou o combate higienista às “invasões”, mas o pleno direito à cidade, à moradia digna e a tudo que os centros urbanos podem fornecer de melhor à população, com conforto bioclimático, qualidade ambiental, serviços públicos funcionais, enfim, com tudo que as pessoas merecem e podem ter!
*Raphael Sebba é sociólogo e mestre em Planejamento Urbano pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (UnB).
**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato - DF.
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Edição: Flávia Quirino