Distrito Federal

Coluna

Brasília, por que ignora sua segregação escancarada?

Imagem de perfil do Colunistaesd
"A estética branca, limpa e reta não é um mero acaso" - Foto: Matías Ocaranza
Quais são os mundos e espaços que de fato reproduzem a vida, a memória e a imagem de sua população?

Consagrada internacionalmente por seu estilo arquitetônico, símbolo de um Brasil moderno, Brasília carrega outras marcas que passam despercebidas em sua história.

A primeira, de ser a cidade mais segregada do mundo de acordo com o relatório produzido pela OCDE em 2018 sobre índices de segregação em todo o mundo. Brasília fica à frente de Emfuleni, na África do Sul, e de Memphis, nos Estados Unidos.

Já a segunda marca é a de possuir em seus arredores a maior favela do Brasil, o Sol Nascente, que superou a Rocinha nos resultados preliminares do IBGE de 2022.

Esses dados, contudo, são intencionalmente ignorados diante da “grandiosidade” do monumento Brasília. Afinal, como Lúcio Costa afirmou ao ser questionado sobre as mortes dos trabalhadores no Massacre da Pacheco Fernandes em 1958: “isso são episódios, não tem a menor importância… foi como uma espuma, uma coisa assim não tem gravidade”.

Ocultar o passado escravista cimentando o futurismo no Planalto Central foi o objetivo desse Brasil moderno. A estética branca, limpa e reta não é um mero acaso, ela segue uma tradição modernista que transforma o ornamento em crime.

Essa ideia, por sua vez, refletiu no planejamento urbano quando os corpos tidos como excesso foram lançados para áreas além da Faixa de Segurança Sanitária. Sob um falso argumento de preservação ambiental das nascentes do Lago Paranoá, a Novacap estabeleceu o limite onde as cidades-satélites deveriam ser construídas: sempre além da rodovia DF-001 em um raio de 20 a 30 km do centro. Assim surgiram Taguatinga em 1958, Sobradinho em 1959 e Gama em 1960 como resultado de remoções forçadas de acampamentos dos trabalhadores.

Ironicamente, a preocupação com as águas de Brasília só surtiram efeitos concretos nos anos de 1990, após uma longa campanha de tratamento do Lago.

:: Brasília é a cidade mais segregada do mundo, aponta pesquisador ::

Mas talvez o caso mais emblemático de remoção forçada seja o de Ceilândia em março de 1971, resultado da Campanha de Erradicação de Invasões (CEI) que daria nome à satélite. Já durante a ditadura civil-empresarial-militar, o governo transferiu cerca de 80 mil pessoas da Vila do IAPI, área próxima ao Setor de Mansões Park Way e Aeroporto, para uma região depois de Taguatinga.

Sem nenhuma infraestrutura, os relatos dos primeiros habitantes da Ceilândia são de um cenário de guerra. Jogados no descampado com os materiais dos barracos que deveriam ser reerguidos, os moradores não tinham sequer acesso à água. Por isso, seu símbolo se tornou a caixa d’água construída apenas 6 anos depois das remoções, motivo de orgulho para os que lutaram por condições dignas de moradia.


"Jogados no descampado com os materiais dos barracos que deveriam ser reerguidos" / Foto: ArPDF, Secretaria de Comunicação Social, 1973.

Nos anos seguintes, os trabalhadores ergueram suas moradias e a infraestrutura da Ceilândia em uma dupla jornada de trabalho. De dia edificaram as construções de Brasília e à noite a infraestrutura de Ceilândia. Mas, no final da década 1970, eles tiveram de enfrentar outro problema, a superfaturação dos lotes pela Terracap. A empresa havia prometido valores muito inferiores no início das remoções e nesse momento, para entrega das escrituras, exigia um valor dez vezes maior.

É dessa luta que surge a Associação dos Incansáveis Moradores de Ceilândia (ASSIMOC). Os Incansáveis possuíam lideranças negras como Hermínio Ferreira e Eurípedes Camargo e estavam atualizados nas desigualdades raciais do DF, como o historiador Marcos Santos apontou na sua premiada monografia “Terracap e Shis versus o Povo: A Luta da Associação dos Incansáveis Moradores de Ceilândia (1971-1988)”.

A ação dos Incansáveis foi para além das lutas judiciais, envolvia educação popular, elaboração de um jornal, denúncias por meio de atividades culturais, onde o agenciamento político se manteve presente e mobilizou, através da arte, da cultura e do lazer, as expressões de uma população negra em resistência urbana.

Há exemplos como o Quarentão, espaço ceilandense em funcionamento até 1994, onde o movimento da black soul music, o cenário do hip hop e movimento político do black power (Poder Negro) se concentravam nas letras de denúncia, nas rítmicas do flashback, do breaking e do baile-charme. Todos eles sendo elementos introduzidos num edifício urbano, e espaço relevante não somente para a população negra e periférica de Ceilândia, mas para todas as periferias do DF.

:: 52 anos da Região Administrativa de Ceilândia: o que desejar para o futuro? ::

Lembremos que Ceilândia foi onde se deu o surgimento de vários nomes do rap, como Câmbio Negro e Tropa de Elite que denunciavam a realidade da negritude na periferia do Distrito Federal. Entre outros territórios culturais, a Escola de Samba Ceilandense Águia Imperial, fusão das antigas Escolas de Samba "Fantoches do Setor O" e da "Unidos da Ceilândia", articulavam-se como movimentos de sociabilidade festiva, historicamente agenciadas pela população negra, bem como também espaços estratégicos de afirmação e comunicação política, sendo contraponto aos cenários urbanos hostis a um corpo negro e periférico, marginalizado nos espaços centrais da cidade.

Desde os Incansáveis Moradores de Ceilândia até o Jovem de Expressão, sendo este um espaço público autogestionável desde 2008 pela juventude de Ceilândia e promovendo formação, encontros, manifestações culturais e políticas, percebe-se que pulsam cada vez mais as reivindicações de uma não-Brasília.


 

São territórios multifacetados encontrados dentro deste grande quadrado. Esses movimentos criam bordas porosas e dilacerações no espaço que foi desenhado para sua própria imutabilidade.

São expandidas as fronteiras do que se define Brasília. Cidade esta que nunca foi uma só.

Percebemos que, entre os diferentes exemplos mencionados até aqui, temos como parte desses movimentos populares o nosso bem mais precioso: o associativismo negro das populações periféricas.

Como movimento de insurgência, esse associativismo esteve presente nas lutas de direito à moradia, de direito à cidade, nas manifestações de resistência culturais, políticos, institucionais e não institucionais. E se desenvolve até os dias atuais.

São essas as utopias reais e insubordinadas, entre concretos e planos urbanos, que reagem aos sistemas anti-negro e anti-periférico dessa Brasília estática, e nos apresentam, ao longo de seis décadas, quais são os mundos e espaços que de fato reproduzem a vida, a memória e a imagem de sua população.

*Raquel Freire é conselheira Superior e coordenadora da Comissão Extraordinária de Equidade de Gênero e Raça do Instituto dos Arquitetos do Brasil/núcleo DF (IAB/DF).

**André Tavares é arquiteto urbanista e coordenador Especial das Comissões e Articulação Política do Instituto dos Arquitetos do Brasil/núcleo DF (IAB/DF).

*** Guilherme Oliveira Lemos é doutor em História pela Universidade de Brasília.

****Este é um artigo de opinião. A visão dos autores não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato - DF.

:: Clique aqui para receber notícias do Brasil de Fato DF no seu Whatsapp ::

Edição: Flávia Quirino