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A questão agrária nas telenovelas e outras possibilidades de representação

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Novamente, tal como em “Rei do Gado” temos a questão agrária reduzida ao conflito intersubjetivo dos personagens, enlaçados por sentimentos de amor e ódio. - Reprodução/TV Globo
Na ficção da Globo o agronegócio é a imagem reciclada e purificada do velho latifúndio

A TV Globo de televisão deu início a mais uma de suas novelas de temática rural em que a questão agrária brasileira aparece retratada, sempre submetida aos critérios redutores do melodrama: “Terra e Paixão”.

A protagonista é uma mulher negra, viúva de um pequeno proprietário assassinado por jagunços de um fazendeiro que quer retomar as terras que seu pai cedeu para o pai do homem que ele decidiu matar. No dia seguinte à morte do marido, ela começa a ser assediada pelos dois filhos do algoz de seu marido: a nova geração do latifúndio, o agronegócio, seria então uma versão mais imbuída de valores morais e menos truculenta, a terra não precisaria mais ser arrancada a força dos pequenos, pode ser comprada.

Visto de forma sistêmica, a questão agrária brasileira aparece na emissora da seguinte forma: nos telejornais existe uma campanha sistemática pela criminalização dos movimentos sociais do campo, em que pautas como a nova edição da CPI do MST são sempre muito exploradas, de modo geral no “bloco do crime”, momento em que são reunidas as pautas sobre violência, prisões de quadrilha e a luta popular é representada como tumulto, desordem, baderna e ameaça ao Estado de Direito, no caso, sinônimo de propriedade.

Outro elemento, é a diária campanha institucional “Agro é pop” com pequenos vídeos que visam “limpar a barra” do modo de produção concentrador das monoculturas produzidas para exportação (commodities agrícolas), destrutivo de biomas e principal responsável pelo êxodo rural e inchaço populacional das zonas metropolitanas. O programa Globo Rural é voltado para “notícias sobre agronegócios” (segundo a página eletrônica do programa) destinado aos agricultores, grandes e pequenos, e aborda mais tecnicamente métodos de cultivo, técnicas de pecuária, etc.

Já nas telenovelas a questão agrária é tratada pelos filtros do melodrama: em Rei do Gado, de 1996, e em reexibição nas tardes da programação da emissora, temos a primeira aparição dos personagens camponeses organizados em um movimento social lutando pela terra, e a paixão improvável de um fazendeiro e uma sem terra.


Novela "Rei do Gado" estreou 1 mês depois do Massacre de Eldorado dos Carajás e mostrava uma conciliação de classes improvável. / Foto: CEDOC/Reprodução Globo

No ano de 1996, em 17 de abril, ocorreu o massacre de Eldorado dos Carajás, na curva do S, no Pará. O fato trágico motivou a Via Campesina Internacional a fazer desse dia a data comemorativa da luta pela terra em todo o mundo. Naquela conjuntura, do décimo segundo ano de existência do MST, vivíamos o governo tucano de Fernando Henrique Cardoso, que buscava por diversos meios desmobilizar a pauta da reforma agrária, fazendo uso de diversos recursos, como o Banco da Terra, e a repressão direta.

Exatamente um mês depois do massacre, em 17 de junho de 1996 estreou a telenovela “O rei do gado” na rede Globo. Se na novela o tema da reforma agrária e o movimento ganhava uma imagem domesticada, na vida real era massacrado com máxima violência dos aparelhos repressivos do Estado. Na fantasia da Globo, o latifundiário Bruno Mezenga vive um romance com Luana Berdinazzi, uma sem terra: a conciliação improvável na vida real é a chave ficcional que move o pivô do melodrama entre um homem poderoso e uma mulher camponesa, classes antagônicas que, na vida real, lutam em trincheiras contrárias.

Novelas mascaram realidade

No ano de 2022 a Globo remontou a telenovela “Pantanal”, remake da primeira versão exibida pela rede Manchete (1990) e nela vemos novamente tramas, disputa pela herança entre os filhos do fazendeiro, conflito pela terra entre fazendeiros vizinhos, e ampla gama de violência, porém, sem a presença de movimentos sociais no mundo glamourizado dos peões, das rodas de viola ao pé da fogueira, das boiadas tocadas nos pastos do Pantanal. Os temas tido como “modernos”, como a questão ambiental, são introduzidos pela cabeça dos filhos dos grandes latifundiários, mais conectados com as pautas do momento.

Na ficção da Globo o agronegócio é a imagem reciclada e purificada do velho latifúndio, sem contudo, abandonar de todo a representação da dinâmica violenta da questão agrária brasileira, porém, aliviando a “culpa” dos proprietários, seres devidamente representados com empatia, com profundidade de conflitos subjetivos, restando aos outros de classe a representação do ressentimento, o desejo de vingança, etc.

Em maio de 2023 estreou “Terra e Paixão”, a protagonista, uma mulher negra de uma média propriedade rural se torna viúva no primeiro episódio, seu marido, que herdou a terra do seu pai, que a recebeu do pai do latifundiário vilão, é assassinato pelos capangas do fazendeiro. Três pretendentes se anunciam, um primo distante, e os dois filhos do latifundiário matador.

Novamente, tal como em “Rei do Gado” temos a questão agrária reduzida ao conflito intersubjetivo dos personagens, enlaçados por sentimentos de amor e ódio. O ambiente da nova novela é o de grandes e pequenos proprietários, mas todos já fazem parte do mundo do agronegócio, ninguém é sem terra, esse assunto foi retirado de cena (dado como algo do passado? Como algo resolvido?) todavia, a violência do agronegócio em sua sanha acumulativa é representada pelo fazendeiro, homem visto pelos filhos como de métodos antigos, antiquados.

Desde a vinheta, as grandes máquinas do agronegócio desfilam na tela sob a trilha sonora do sertanejo pop, nas cenas as caminhonetes são o principal meio de transporte, seja dos personagens abastados, como dos mais pobres. Há certa ideia de bonança do mundo rural brasileiro, a despeito da violência do racismo e do machismo se fazerem presentes, pautas que a emissora tem progressivamente encampado em seus programas.

Alternativas de representação

Fato é que existem muitos outros meios de representar a questão agrária e a luta pela terra no audiovisual brasileiro, para além das reduções ideológicas e formais das telenovelas da Globo.

Exemplos se espalham ao longo da história: no período do Cinema Novo temos, entre outros, os romances de Graciliano Ramos “Vidas Secas” (1938) e “São Bernardo” (1934) se tornando filmes em versões de Nelson Pereira (1963) dos Santos e Leon Hirszman (1972), respectivamente.


Filme Chão foi um dos exibidos na Mostra Cinema na Terra: a conquista das telas em 2020 / Reprodução/FIlme Chão

O massacre de Eldorado dos Carajás e a luta pela terra mais recente, foi abordada com grande eficácia estética e política pela série “A farsa: ensaio sobre a verdade” da companhia paulista Estudo de Cena, em linguagem épica e dialética, que em muito se difere do padrão limitado da representação dramática.

E o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), por meio da Brigada de Audiovisual Eduardo Coutinho, tem produzido sistematicamente seus próprios filmes e vídeos desde 2007. Menciono como exemplo a versão adaptada da peça “Mutirão em Novo Sol” (1961), primeira peça em que a questão agrária e a luta pela terra foi representada em primeiro plano por personagens camponeses, no teatro brasileiro – escrita por Nelson Xavier, Augusto Boal entre outros – que a Brigada Nacional de Teatro do MST Patativa do Assaré, em parceria com a Brigada de Audiovisual Eduardo Coutinho elaborou à convite de Cecília Thumin Boal, do Instituto Augusto Boal, para a Feira virtual de Opinião na pandemia.

Nesses dois casos, o universos restrito da forma dramática, movido por conflitos intersubjetivos dos personagens, mediado pelo diálogo como veiculo da ação, e preso no tempo presente, é superado por ampla gama de recursos épicos e dialéticos, como a narração, o recursos dos coros como voz coletiva de classes sociais e grupos antagônicos que representam os universos do capital e do trabalho, recursos de fragmentação e montagem com inserção de outros materiais audiovisuais, como trechos de filmes, reportagens, encenações, etc.

Por óbvio, a janela de exibição dessas produções é muito menor que a de telenovelas. Em geral, apenas as televisões universitárias como a UnBTV, ou comunitárias, como a TV Comunitária do DF, além dos canais no youtube destas organizações e coletivos, se encarregam de circular esses formatos e linguagens que se contrapõem às formas hegemônicas que imperam no imaginário nacional.

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*Rafael Villas Bôas é professor da Universidade de Brasília.

**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.

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Edição: Flávia Quirino