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Coluna

Violências contra crianças e adolescentes é reflexo do desfinanciamento de políticas públicas

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DF tem vivido fragilidade no sistema de garantia de direitos, como políticas de assistência, saúde e educação - Foto: Elza Fiuza/Agência Brasil
Estado deve financiar política que promovam direitos e garantam proteção de crianças e adolescentes

Antes de qualquer palavra, texto, teoria, antes do nosso café da manhã, do copo d’água, do banho em água quente, antes de qualquer coisa, não deveríamos dormir ou acordar sem nos angustiarmos com os números de violências que acometem todos os dias crianças e adolescentes no Brasil.

Só nesses primeiros 4 meses de 2023, o Disque 100 recebeu 69.362 denúncias de violações contra meninos e meninas de 0 a 18 anos de todo o país. Isso significa, pelo menos, 578 denúncias por dia.

No que diz respeito à violência sexual, que choca mais a depender da classe e raça/etnia da vítima, o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2022 (1) elaborado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) trouxe dados alarmantes dos últimos anos.

Em 2021, considerando os casos notificados, 45.076 crianças e adolescentes de 0 a 17 anos foram vítimas de estupro. Mais de 79% destas estavam na faixa etária de 0 a 13 anos. Soma-se a estas, as vítimas de pornografia infanto-juvenil (1.797) e outros tipos de exploração sexual (733). Todos esses números aumentaram de 2020 para 2021. É importante ponderar que as violências são subnotificadas, pois as crianças têm menos condições de realizar as denúncias. Quando se trata de estupros, em 82,4% dos casos os perpetradores são conhecidos (pais, padrastos, irmãos, etc) e 76,5% das situações aconteceram dentro da própria casa da vítima.

No que tange à realidade do Distrito Federal (DF), ainda de acordo com o Disque 100, neste primeiro semestre de 2023 foram notificadas 1235 violências das mais variadas com crianças e adolescentes. Quanto à especificidade da violência sexual, a Secretaria de Segurança Pública do DF registrou, de janeiro a março de 2023, que do total das vítimas de estupro da capital do país, 60,3% foram de vítimas vulneráveis (2), sendo que 75% tinham idade abaixo de 14 anos. Em números absolutos, foram 93 crianças e adolescentes violentadas sexualmente, sendo 79,8% meninas. Ou seja, pelo menos uma menina foi estuprada por dia no Distrito Federal em 2023. Isso significa que a realização da proteção integral, conforme prevê o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), ainda está distante da realidade de milhares de crianças e adolescentes.

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Esse cenário foi mantido e potencializado pelos discursos e decisões políticas tomadas por atores públicos que integravam e ainda integram cargos importantes no Estado. A ex-ministra dos direitos humanos, Damares Silva, eleita senadora pelo DF, por exemplo, critica veementemente o ensino da educação sexual nas escolas e verbaliza fake news sobre o que seria essa instrução, quando efetivamente a educação sexual é essencial para que crianças e adolescentes se protejam, identificando quando estão sendo violadas e a quem procurar nesse tipo de situação.

Outro exemplo foi o ex-presidente Bolsonaro que naturalizou a exploração sexual de meninas venezuelanas como se fosse normal a prostituição entre adolescentes, quando o que ocorria era uma violência em que o Governo Federal, representado pelo chefe do Executivo, não foi capaz de agir de acordo com a legislação. 

Este governo foi apoiado de forma explícita pelo governador do Distrito Federal, reeleito em 2022, o que significa que na capital mantém-se uma gestão que não prioriza os direitos e a proteção da infância e adolescência. A exemplo da greve dos professores, em que Ibaneis Rocha retira sua responsabilidade sobre as condições salariais da categoria, que impacta diretamente na qualidade da educação de meninas e meninos, e os culpabiliza por “prejudicarem” a educação das crianças e a rotina das famílias.

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Quando, na realidade, o governo do DF é o grande responsável por milhares de crianças e adolescentes estarem sem estudar e sem acessar a escola, lugar privilegiado de proteção, inclusive no que tange à possibilidade de identificação da violência sexual. Portanto, a escola tem um papel fundamental no reconhecimento e denúncias de violações vividas pelas meninas e meninos, mas, além disso, e o que é mais importante, na prevenção das violências a partir do ensino sobre direitos humanos, ECA, cidadania e educação sexual. 

O fortalecimento da cultura e naturalização das violências, assim como o aumento de casos, não se deu apenas pelos discursos, mas por uma gestão política que decidiu por não financiar ações de prevenção às violências contra crianças e adolescentes.

Temos visto no DF a fragilização do sistema de garantia de direitos (SGD): das políticas de assistência, de saúde e de educação, por exemplo. E não há recursos exclusivos no orçamento do governo de Brasília para ações que previnam as violências sexuais. O foco da gestão está em atender as demandas depois da ocorrência de violações, o que fica nítido no decreto nº 42.542 de 2021 do GDF que instituiu a Política Intersetorial de Enfrentamento às Violências contra Crianças e Adolescentes do Distrito Federal e focaliza em eixos e diretrizes de proteção e defesa depois da violência ocorrida.

Pesquisa qualitativa realizada por Rebeca Berka sobre a Rede de Proteção de Crianças e Adolescentes do DF no combate à violência sexual mostra que,  ainda assim, o acompanhamento da criança já vitimada nem sempre é satisfatório, por conta da falta de preparo e conhecimento dos fluxos por parte dos profissionais da rede, falta de infraestrutura dos equipamentos públicos e falta de recursos humanos suficientes para os atendimentos (Berka, 2022).

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Transparência

De acordo com o Portal da Transparência do Governo do Distrito Federal (GDF), no orçamento de 2022 foram autorizados R$ 273 mil para a ação de Manutenção e Funcionamento do Centro de Atendimento Integrado de Crianças Vítimas de Violência Sexual (conhecido como Centro 18 de maio), no entanto foram gastos apenas R$ 120 mil, menos da metade do recurso disponível. E em 2023, há R$ 214,6 mil de recursos autorizados, no entanto, até maio deste ano foram executados apenas R$3,5 mil para esta ação, ou seja, 1,6% do recurso disponível. Os equipamentos do SGD precisam de maior apoio financeiro tanto para infraestrutura quanto para aumentar o número de profissionais de modo a conseguir responder a todas as demandas. Caso contrário, as crianças e adolescentes vítimas de violências continuarão sendo revitimizadas na relação com o Estado e isso tem como consequência a manutenção das violações.

O governo federal também não tem apoiado financeiramente as políticas de enfrentamento das violências desde 2018, principalmente no que diz respeito à prevenção, como mostramos no relatório do Inesc “Depois do desmonte - Balanço do Orçamento Geral da União 2019-2022”. 

A sociedade civil, os movimentos sociais e servidores implicados com o enfrentamento das violências ainda têm muito trabalho de incidência pela frente. Precisamos elaborar de forma ampla e participativa um planejamento que tenha como foco a prevenção e pressionar para que o Estado financie políticas que promovam direitos de crianças e adolescentes de modo a garantir que elas estejam, de fato, protegidas. Afinal, as consequências dessas vivências são graves e podem perdurar por toda a vida.

18 de maio é Dia Nacional de Combate ao Abuso e Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes, mas precisamos ficar atentas de que esse enfrentamento deve acontecer todos os dias e com envolvimento de todos os atores da rede de proteção, o que inclui sociedade e famílias. No entanto, o papel do Estado é fundamental, pois para que meninas e meninos estejam livres de violências é necessário o acesso a seus direitos básicos, tanto por parte das crianças quanto de suas famílias.

Notas: 1) Anuário Brasileiro de Segurança Pública se baseia em informações fornecidas pelas secretarias de segurança pública estaduais, pelas polícias civis, militares e federal, entre outras fontes oficiais da Segurança Pública.

2) De acordo com o artigo 217-A do Código Penal, vítimas vulneráveis são: menores de 14 anos ou pessoa que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência.

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*Thallita de Oliveira é especialista em políticas públicas para infância e juventude e assessora política do Inesc.

**Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato - DF.

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Edição: Flávia Quirino