Pioneira na política de cotas raciais entre as instituições federais a Universidade de Brasília (UnB) comemora neste mês de junho 20 anos da implementação de ações afirmativas para receber alunos negros e indígenas.
A professora e pesquisadora Dione Moura participou do Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão (CEPE), que aprovou as cotas na UnB em 2003 e destaca que essa política se tornou referência para a aprovação da Lei 12.711 (Lei de Cotas), em 2012.
“É do projeto de cotas da UnB que surgiu a Lei de Cotas. E essa é a maior alegria que a gente tem, ou seja, o que era uma política pública que foi inserida na UnB, com a política de ação afirmativa transformou-se numa política pública modelo pra todo o Brasil”, afirmou a professora Dione Moura, que desde 2002 faz parte do corpo docente da Faculdade de Comunicação da UnB.
:: Universidade de Brasília comemora 20 anos de cotas raciais ::
Em entrevista ao Brasil de Fato DF a pesquisadora fala do processo de implementação das cotas, as críticas e sobre o futuro.
A política de cotas na UnB foi aprovada no dia 6 de junho de 2003 pelo CEPE e incluída no Plano de Metas para Integração Social, Étnica e Racial que estabeleceu 20% das vagas do vestibular para candidatos negros e disponibilização de vagas para indígenas, de acordo com demanda específica. A medida entrou em vigência no ano seguinte e com isso a Universidade de Brasília se adiantou em quase uma década em relação a várias universidades federais que só passaram a utilizar a ação afirmativa com a promulgação da Lei de Cotas em 2012.
Brasil de Fato DF – A Universidade de Brasília é vanguarda na implantação de cotas raciais em uma universidade pública federal, como foi esse processo de implantação das cotas na UnB há 20 anos, o que motivou?
Dione Moura - O início do processo de cotas ocorreu na UnB por alguns fatores, mas vou destacar dois: o primeiro fator foi uma questão interna na comunidade acadêmica. Um caso de racismo na comunidade e esse caso gerou grande mobilização de estudantes e professores. Esse é um aspecto de contexto imediato e tem um aspecto de contexto mais amplo que é o fato do Brasil ter participado da Conferência de Durban na África do Sul em 2001. Então, essa comitiva brasileira que foi a Durban fez um périplo, uma rotina, várias visitas às universidades brasileiras informando que o Brasil assinou um tratado de combate ao racismo, de adotar ações afirmativas como formas de combater o racismo.
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E qual foi a contribuição dos movimentos sociais, em especial do movimento negro, neste processo?
Esse contexto pós-Durban criou e gerou debates em várias universidades, inclusive na UnB, principalmente por meio dos Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros, o NEAB. E isso foi fomentando. Esse “caldo” todo foi sendo fomentado, junto com a desigualdade racial existente e um cenário de debates que por fim eclodiu de uma forma muito oportuna e no momento certo. Então, na reunião de 6 de junho de 2003, o Conselho de Pesquisa e Extensão (CEPE) da UnB, nós, conselheiras e conselheiros, aprovamos o plano da promoção da igualdade étnico racial na Universidade.
Ainda nesse contexto também, tenho que destacar a participação do EnegreSer, Movimento Estudante Negro na universidade que foi um agente importante nas críticas às situações de racismo. O movimento também foi importante na agenda de promover uma política de igualdade racial.
Portanto, esse processo é fruto de várias mãos e fruto de um contexto histórico e felizmente o CEPE teve a decisão histórica correta, porque foi adotar o plano de ações afirmativas da redução da desigualdade social e racial na UnB.
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As ações afirmativas para o ingresso na universidade ainda sofrem muitas críticas mesmo 11 anos após a aprovação da Lei da Cotas. A UnB se adiantou em quase uma década nesse processo. Então, como a comunidade acadêmica reagiu a esse processo?
A UnB tem uma agenda que nos foi deixada que é uma agenda simbólica de compromissos sociais que foi um legado do nosso fundador Darcy Ribeiro. E nessa agenda de compromissos diz que temos que ser uma universidade transformadora. Essa transformadora é no sentido de ter o Brasil e o povo brasileiro como a nossa pauta principal. Então a reação da comunidade acadêmica foi muito nesse sentido.
Na comunidade acadêmica havia pessoas que não conheciam as ações afirmativas ou não estavam relacionados intimamente de forma próxima com esse movimento de debate da questão étnico-racial ou da discriminação de pessoas negras e dos povos indígenas. Porém, mesmo esses docentes e técnicos, de modo geral, aderiram a proposta, porque tem esse legado do Darcy. Esse legado nos diz: façam todas as ações transformadoras que tiverem que fazer para o povo brasileiro viver melhor.
Naturalmente tiveram grupos minoritários de professores que fizeram críticas, que resistiram à ideia da necessidade das ações afirmativas, mas tudo colocado num patamar de diálogo, num patamar que é próprio da comunidade universitária.
Admitir o racismo na sociedade
E fora da universidade, como a opinião pública da sociedade em geral reagiu a implantação das cotas na UnB?
Em termos externos, a resistência da opinião pública foi muito grande. A resistência, a incompreensão, porque primeiro para admitir que precisa de ações afirmativas, é preciso admitir que existe o racismo e, até aquele momento, a opinião pública brasileira não admitia que existia racismo. Também precisa admitir que o racismo causa desigualdades, precisa admitir que nós somos um país que pratica o racismo. Então, para admitir [as cotas] a opinião pública teria que admitir que essa prática do racismo gerava desigualdades, inclusive no acesso à educação e esses eram pressupostos que a opinião pública não estava preparada pra assumir.
A opinião pública resistiu bastante por meio de artigos de opinião, por meio de debates, por meio de audiências públicas. Alguns personagens da sociedade vinham com esse argumento: “não, o Brasil não é um país racista” ou “a desigualdade existe, porque ela é de fruto de renda e não é de fruto de identidade étnico-racial”.
Porém, os dados diziam o contrário. Os dados diziam que a desigualdade de acesso à educação tinha sim um fator étnico-racial e aos poucos o debate foi avançando e a compreensão cresce. À medida que o debate, o diálogo abre a compreensão, finalmente conseguimos isso.
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Você atuava como professora na UnB desde antes da implementação das cotas, como observou a mudança que ocorreu na universidade nesses 20 anos?
Costumo dizer que nos primeiros anos a gente focava muito em perceber essa mudança na universidade. Na primeira década a transformação que a gente percebia era só na UnB. Então, era a UnB com mais estudantes negros e mais estudantes indígenas, visivelmente andando nos corredores, nas salas de aula, nos laboratórios, nos projetos de pesquisa, os projetos de extensão. Depois dos primeiros dez anos, essa transformação que a UnB promoveu já é vista em outras universidades.
Gostaria que você comentasse também sobre esse impacto da implementação das cotas da UnB para as outras universidades.
Essa transformação hoje que a UnB vive, começou há 20 anos e gerou uma modificação e transformação em todo o Brasil. Porque é do projeto de cotas da UnB que surgiu a Lei de Cotas. E essa é a maior alegria que a gente tem, ou seja, o que era uma política pública que foi inserida na UnB, com a política de ação afirmativa transformou-se numa política pública modelo pra todo o Brasil.
Então, a transformação que a gente vê hoje, lá de 2003, não é só mais na UnB. Essa transformação gerou ações afirmativas nas universidades públicas de todo o Brasil. Portanto, é um impacto que não tinha como alcançar algo maior. A não ser se a gente tivesse alcançado uma democratização plena do ensino.
"O projeto de ação afirmativa só existe, porque a gente não tem acesso a educação"
E qual o futuro da política de cotas, tendo em vista a contínua necessidade de democratização de ensino?
E se nós tivéssemos cidades brasileiras, onde os maiores edifícios não fossem shoppings e estádios e sim creches, escolas de ensino fundamental, ensino médio e universidades?
Essa é uma outra transformação que o nosso projeto quer gerar, mas aí é um tempo muito maior. Que seja a democratização do acesso à educação, da creche até o Ensino Superior. E temos que pensar que para isso acontecer nós temos que ter instalações, prédios, edifícios em toda cidade brasileira que sejam áreas de educação e que sejam pelo menos do tamanho de um shopping, de um estádio.
Essa é a transformação que nós queremos gerar mais adiante, porque o projeto de ação afirmativa só existe, porque a gente não tem acesso à educação. O dia em que tivermos acesso à educação para toda a população brasileira não precisaremos mais de ações afirmativas e é isso que qualquer docente, educador, educadora cidadã, como eu, deseja e trabalha.
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Edição: Flávia Quirino