Políticas públicas de reparação e ação afirmativa são pivôs estruturantes de democratização
Quando o debate sobre políticas de ações afirmativas entrou pra valer na universidade brasileira o contexto era de maioria de professores e estudantes brancos. Amigas e amigos negros reportavam que não era incomum serem inqueridos, no campus, de que país africano eles eram, quando estavam a conversar em grupo. Aos olhos de quem perguntava era menos comum supor que se tratava de um grupo de estudantes brasileiros que de um grupo de estrangeiros em intercâmbio na UnB.
No dia 22 de junho de 2023 a UnB comemorou os 20 anos da votação favorável pelas cotas em sessão especial do Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão (CEPE), com a presença da ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco, que se apresentou como egressa cotista da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ). Em duas décadas, temos uma geração de ministras e ministros em que, dentre elas, há uma personalidade política que foi cotista: um dado evidente de como as políticas públicas de reparação e ação afirmativa são pivôs estruturantes de democratização da desigual sociedade brasileira.
::Em comemoração aos 20 anos de cotas na UnB, comunidade acadêmica discute desafio da permanência ::
No início da fala a Ministra reconheceu e agradeceu pela luta de um coletivo de estudantes negros e negras da UnB, o EnegreSer, que se reuniu há mais de duas décadas atrás para protestar contra as diversas formas de discriminação que sofriam no cotidiano. Coletivo combativo que militou de diversas formas, em todas as instâncias possíveis, e teve papel determinante no convencimento da comunidade acadêmica para a adoção da política de cotas. Em 2022, o documentário “Rumo”, com entrevistas com os ex-integrantes do coletivo foi premiado na 55º edição do Festival de Cinema de Brasília.
O CEPE votou pelas cotas no dia 06 de junho de 2003. Na capital em que o índice de segregação sócio-racial por habitação é um dos maiores do planeta, o fato era emblemático. E não aconteceu sem resistência: eu fazia parte do Conselho como um dos representantes do segmento estudantil quando o assunto começou a ser pautado, no início do século XXI, e presenciei as discussões até o ano de 2001. O assunto ficou em pauta no CEPE por anos, existia resistência e a administração superior postergava o momento de colocar em votação, enquanto isso, pelo campus Darcy Ribeiro o debate fervilhava, o letramento racial crescia exponencialmente.
As reticências ao projeto eram muitas: alegavam que a medida faria cair a excelência da UnB, que era uma medida importada como moda dos Estados Unidos, que na universidade o que vale é o princípio da meritocracia e que as cotas privilegiariam um segmento em detrimento de outros.
Os contra-argumentos de antes da aprovação do projeto e após a implementação foram sendo combatidas com exemplos concretos, como o do estudante e hoje professor doutor Gustavo Abílio Galeno Arnt, que entrou por cotas na graduação do curso de Letras no 2º semestre de 2004, se formou em 2007 e ingressou em primeiro lugar geral do processo seletivo do mestrado em Literatura do Instituto de Letras da UnB em 2008. Ele aponta para a necessidade de medidas que garantam o ingresso e a permanência: “Um elemento que considero decisivo para minha trajetória foi um programa de acolhimento para os cotistas chamado Afroatitude. Além de ser um ponto de encontro para os cotistas havia estudos sobre a questão racial no Brasil. O pilar do programa era uma bolsa de permanência atrelada à realização de iniciação científica. Isso fez muita diferença para todos os estudantes que ingressaram naquela época”.
Temos cotas, e agora?
Depois de aprovada as cotas, outras batalhas foram intensificadas, como a do fortalecimento das políticas de assistência estudantil e o combate ao racismo dentro das salas de aulas. A universidade começou a adquirir um vocabulário comum e a tornar mais robusta sua musculatura para enfrentar as perversas dinâmicas do racismo estrutural. Com a presença mais ampla de estudantes negras e negros, há uma diversificação maior de objetos de pesquisa, de projetos de extensão, de linhas de pesquisa na pós-graduação, e a ideia de excelência vai se mostrando concomitante e indissociada à democratização do acesso e a inclusão.
O saldo da adoção pioneira das cotas na UnB e, posteriormente, no conjunto das universidades federais, são imensos: em vinte anos a cara e a cor da UnB e das universidades públicas brasileiras mudaram, a presença negra se expandiu na graduação, na pós-graduação e, avança, embora ainda de forma lenta, no corpo docente.
Foram muitas e muitos personagens fundamentais das batalhas travadas, professores, técnicos, estudantes, militantes do movimento negro, jornalistas. Os professores José Jorge de Carvalho e Rita Laura Segato, da Antropologia da UnB, foram os autores da proposta, o professor Nelson Inocêncio do Instituto de Artes, atualmente membro da direção da Associação dos Docentes da UnB (ADUnB), e ex-coordenador do Núcleo de Estudos Afro-brasileiros foi e continua sendo dos mais engajados ativistas na luta contra o racismo e por medidas de reparação, da UnB. E é importante destacar o papel que desempenhou o escritor, poeta e militante do movimento negro Edson Cardoso, organizador da Marcha Zumbi dos Palmares e da Marcha Zumbi + 10, e editor do extinto jornal Irohin, que no período ministrou inúmeros cursos e palestras e foi um dos principais responsáveis pela formação de uma geração de militantes negros e brancos, conscientes do papel que o racismo cumpre como cimento da desigualdade brasileira, e da necessidade da luta anti racista para a consolidação de nossa democracia.
Enfrentamos nos últimos quatro anos um governo de características neofascistas, que teve nas universidades públicas um dos alvos centrais, mas conseguimos sustentar as medidas de democratização estrutural que adotamos no início dos anos 2000, embora com crescentes dificuldades para garantir a permanência dos estudantes sem precarização, diante dos cortes orçamentários que recebemos.
Na sessão especial do CEPE sobre os 20 anos de cotas a reitora da UnB Márcia Abrahão disse: “Quanto mais recebíamos cortes orçamentários nós ampliávamos as ações afirmativas na UnB, com as cotas para afrodescendentes, as cotas para estudantes indígenas, e agora estamos implementando as cotas para a pós-graduação e discutindo as cotas em concurso para docentes. Criamos a Câmara dos Direitos Humanos e aprovamos a política de assistência”. As cotas formaram uma geração de dirigentes comprometidos com a democratização sócio-racial da universidade e do país.
:: Leia outros textos deste colunista aqui ::
*Rafael Villas Bôas é professor da Universidade de Brasília.
**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.
:: Clique aqui para receber notícias do Brasil de Fato DF no seu Whatsapp ::
Edição: Márcia Silva