A mulher negra advogada, sempre sofrerá os maiores impactos da violência, do racismo e desrespeitos.
Ser uma advogada negra quilombola e fazer assessoria jurídica popular quilombola em um país estruturalmente racista, tem sido um exercício de paciência, capacidades e luta. Principalmente, quando se transita em espaços, que em uma visão muito racista, não foram feitos para você estar.
Na ocupação desses espaços nunca habitados por advogados negros quilombolas, é necessário contar com as forças daquele todo poderoso, dos Orixás e todos os santos, porque nessas horas a religião não tem assento e todo milagre é bem-vindo, para que muitos de nós não violemos nosso Código de Ética da advocacia, o Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) ou qualquer outro instrumento legal.
Para além desse desafio de estar nos espaços, é precioso enfatizar que, a mulher negra advogada, sempre sofrerá os maiores impactos da violência, do racismo e desrespeitos. Isso ainda é capaz de piorar, transformando o exercício da advocacia em um trabalho de risco, principalmente quando se advoga para pessoas ou populações em situação de extrema vulnerabilidade. A advogada fica sujeita a sofrer violações dos direitos enquanto cidadã, enquanto defensora de direitos humanos e enquanto profissional, na defesa de alguém que já passou por uma vida inteira de violações.
Mas aí você me pergunta: Mas e cadê? Onde ficam os direitos, as prerrogativas da advocacia da OAB?
Devolvo a pergunta: em que mundo você vive? O exercício da advocacia não gira em torno desse mundo dos privilégios de pessoas brancas não. A advocacia popular quilombola vai a municípios onde Judas já perdeu as meias, porque as botas ele já tinha pedido muito antes de chegar lá.
Todos os dias o desafio de ser mulher, negra e quilombola se apresentam. E todos os dias é preciso seguir.
Veja o exemplo das colegas de Santa Catarina na defesa de uma criança violentada sexualmente e que precisava fazer um aborto (previsto em lei). Abriram inquérito contra elas como se tivessem violado o sigilo do processo, criminalizadas porque protegeram uma criança em relação ao tratamento recebido de uma juíza e do Ministério Público, que estavam obrigando a criança a manter a gestação, oriunda de estupro. Elas levaram até o fim a tarefa essencial da advocacia que é a defesa de direitos. Esse é um bom exemplo de violência contra mulheres advogadas e a negligência dos poderes.
Esse caso está relacionado com a questão racial, porque mesmo sendo advogadas não negras, elas atuaram na defesa dos interesses de uma criança negra. Essas advogadas, que também se colocam em defesa de pessoas que se encontram no extremo da desproteção e, sobretudo, que sofrem graves violência racial e de gênero - acabam também sendo vítima dessa violência.
Temos também o caso da colega advogada popular Lenir Correia, que teve sua casa arbitrariamente invadida no Estado de Rondônia, devido a sua atuação na defesa e permanecia de comunidades camponesas em suas terras.
Violações como essas, nos fazem refletir sobre os riscos que corremos e o quanto estamos desprotegidas e expostas no exercício profissional, principalmente quando se atua na advocacia popular em defesa de comunidades quilombolas. Onde geralmente iniciamos o dia com uma reunião e terminamos o dia com mais de cinco, peticionando em alguma instância superior, em alguma ação possessória ou terminamos o dia despachando com alguma autoridade pública em algum canto do país, tratando de situações de violações de direitos quilombolas e as vezes até assassinato de liderança quilombolas.
Violência essa que já foi retratada na pesquisa realizada pela Terra de Direitos e a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Ruais Quilombolas (CONAQ), “Racismo e Violência Contra Quilombos no Brasil”, publicada em 2018, que evidencia o aumento de assassinato de lideranças quilombolas e principalmente das mulheres quilombolas, justamente porque são essas mulheres quilombolas que mantêm o movimento em movimento.
Um importante exemplo de como as mulheres quilombolas movem o movimento foi o 2º Encontro Nacional de Mulheres Quilombolas da CONAQ, grande mobilização que ocorreu em Brasília do dia 14 a 18 de junho, contando com a presença de várias autoridades e presenças ilustres do mundo político e artístico, para além das 312 mulheres quilombolas do Brasil e duas companheiras palenqueras do Equador e da Colômbia.
:: Centenas de mulheres quilombolas se encontram em Brasília para debater direitos e garantias ::
No encontro, várias temáticas foram trazidas e reivindicações foram feitas pelas mulheres quilombolas, seja na plenária, nos grupos de trabalhos criados para discutir os vários temas que nos preocupam e que o movimento vem colocando força para avançar: política de titulação dos territórios quilombolas a acesso às políticas de saúde, saneamento básico, educação, segurança alimentar e respeito as religiosidades. Foi momento de reencontros, de trabalhos, mas também de encantos, cantos e brincadeiras entre as companheiras de luta que estão espalhadas pelo Brasil, cada uma cuidando de seu território.
:: Assista - Regularização fundiária é pauta central das mulheres quilombolas ::
Além das forças ancestrais que faz seguir em frente nas lutas, são essas mulheres que nos inspiram e fortalecem para continuidade nos enfrentamentos da assessoria jurídica popular. Porque “Quando uma mulher quilombola tomba, o Quilombo se levanta com ela”.
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*Vercilene Francisco Dias, é quilombola do Quilombola Kalunga, de Cavalcante (GO), advogada popular quilombola, doutoranda em Direito pela Universidade de Brasília e coordenadora do Jurídico da CONAQ. Integrante da Rede Nacional de Advogadas e Advogados Populares (Renap).
**Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.
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Edição: Flávia Quirino