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Descriminalização

Artigo | Criminalização de porte de drogas para consumo é inconstitucional

"Debate precisa abarcar um projeto que dê conta de incorporar as pessoas que hoje são as vítimas da política de drogas"

Brasil de Fato | Brasília (DF) |
STF retoma julgamento sobre descriminalização de porte de drogas nesta quarta (2) - Foto: Antonio Augusto/STF

Em junho, a presidenta do Supremo Tribunal Federal (STF), ministra Rosa Weber, colocou na pauta de julgamento pelo Plenário da Corte o Recurso Extraordinário 635.659, que discute a inconstitucionalidade do artigo 28 da Lei 11.343/2006 (porte de drogas para consumo pessoal).

O processo, que tramita desde 2011 e possui relatoria do ministro Gilmar Mendes, estava fora da pauta de julgamento desde 2015, após pedido de vistas do então ministro Teori Zavaski. Até então, os três votos proferidos foram os dos ministros Gilmar Mendes, Luís Roberto Barroso e Edson Fachin, todos pela inconstitucionalidade do artigo.

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Dos votos proferidos, em resumo, Gilmar Mendes (relator) votou pela inconstitucionalidade do dispositivo, sem restrições. Edson Fachin acompanhou a relatoria, porém limitou a declaração de inconstitucionalidade do porte à maconha, afirmando que deve-se manter a criminalização até que o Congresso fixe parâmetros que diferenciem as condutas de tráfico e porte. No mesmo sentido votou Luís Roberto Barroso, limitando a liberação do porte de maconha e fixando o parâmetro em 25 gramas e/ou a plantação de seis plantas fêmeas. O próximo voto é do ministro Alexandre de Moraes. O julgamento acontece nesta quarta-feira, 2 de agosto.

De início, é importante pontuar que a legislação brasileira faz uma diferenciação entre uso adulto - ainda proibido pelo art. 28 da Lei 11.343/06 - e uso medicinal - permitido pelo art. 2º da mesma Lei, porém pendente de regulamentação pelo Legislativo - que é bastante conservadora.

Isso porque diferentes experiências ao redor do mundo têm demonstrado que a utilização com finalidade recreativa tem efeitos terapêuticos (vide processos de regulamentação do uso no Uruguai, estados dos Estados Unidos da América e alguns países da Europa), mas também porque os efeitos do proibicionismo são absolutamente perversos, corrompendo por completo a finalidade da Lei.

Ora, a Lei de Drogas tem como justificativa pela sua existência a proteção à saúde e segurança públicas.

Contudo, desde sua implementação os efeitos concretos da legislação foram de encontro às suas finalidades.

Primeiro, é à lei 11.343/06 que se atribui a responsabilidade pelo hiperencarceramento da juventude negra e periférica no país, o que levou ao reconhecimento de “Estado de Coisas Inconstitucional” do sistema carcerário nacional (vide julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 347).

A superlotação prisional, além de favorecer a capilarização de diferentes organizações criminosas, também impulsiona a proliferação de inúmeras doenças como ISTs, tuberculose, pneumonia e outras, como aponta estudo do CNJ.

Segundo, estudo recente do IPEA demonstra que a taxa de homicídios atribuída ao proibicionismo é bastante alarmante em grandes centros do país. Na região metropolitana do Rio de Janeiro, cerca de 31% das mortes envolvendo 447 vítimas tiveram como motivação o tráfico de drogas. Em Belo Horizonte, de 194 relatórios finais de inquéritos por homicídio, o tráfico foi considerado responsável por 30,8% das mortes. Por fim, em São Paulo a taxa é de 27.74%.

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Além do mais, a legislação não fixa parâmetros concretos de diferenciação entre usuário e traficante.

Em um país onde o racismo é institucionalizado, oferecer às próprias instituições a possibilidade de definir a partir de critérios subjetivos a tipificação da conduta como sendo ou posse para uso (art. 28 da Lei 11.343/06, penas restritivas de direitos), ou tráfico (art. 33 da Lei 11.343/06, pena de reclusão de cinco a quinze anos, além de multa) é contraditório.


"É evidente que há absoluta inadequação entre a norma e sua finalidade." / Luiz Fernando Petty

O que se tem observado é que os critérios estabelecidos pela agências de controle possuem lentes de análise que enviesam a conclusão. Lentes essas calcadas no preconceito de raça e de classe.

São inúmeras as condenações de pessoas pelo crime tipificado no art. 33 da Lei. 11.343/06 por portarem pequena quantidade de drogas em “locais conhecidos como ponto de tráfico de drogas”. Esses locais, contudo, sempre coincidem com territórios periféricos, nunca com o subúrbio. As “circunstâncias sociais e pessoais do agente” que determinam se a pessoa é traficante ou não, geralmente são condições de pessoas em situação de vulnerabilidade social.

Em 2018, a Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro publicou o relatório final da pesquisa sobre as sentenças judiciais por tráfico de drogas na cidade e região metropolitana do Rio de Janeiro.

O estudo se ocupou em analisar 3.167 (três mil cento e sessenta e sete) processos judiciais distribuídos entre 1º de junho de 2014 e 30 de julho de 2015 no Tribunal de Justiça daquele estado. Os processos selecionados eram os que tinham como objeto os artigos 33, 34, 35 ou 37 da Lei 11.343/06.

No relatório é importante observar que a maior parte das prisões ocorreu com pessoas portando pouca quantidade e pouca variedade de drogas. A soma das frequências de apreensão de pessoas que portavam até 100g de maconha, por exemplo, chega a 49,72% do total. No mesmo sentido, as prisões são por pouca variedade de drogas: 48,04% portavam apenas uma espécie de droga e 38,44% portavam duas variedades. 

Por fim, as “condições da abordagem e do suspeito” - critérios estabelecidos pela Lei 11.343/06 para diferenciação entre usuário e traficante - também obedecem a um padrão.

Dentre as condições, “Réu abordado pela polícia em razão de comportamento suspeito” e “Apreensão em ponto conhecido pela venda de drogas” aparecem 31,49% e 42,41% das vezes, respectivamente. O mesmo estudo aponta que o “local considerado como ponto de venda de drogas” coincide com uma favela em 65,84% das vezes.

É evidente que há absoluta inadequação entre a norma e sua finalidade.

Inadequação essa que deve ser corrigida a partir da declaração de inconstitucionalidade do art. 28 da Lei 11.343/06. Estamos diante de uma oportunidade que pode marcar o início de uma política de reparação de danos às pessoas e às comunidades afetadas pela política de drogas no país.

O debate, portanto, precisa abarcar um projeto que dê conta de incorporar as pessoas que hoje são as vítimas da política de drogas no país.

Primeiro, deve-se levar em consideração, por exemplo, que caso se fixe um parâmetro em que se considere 25g a condição para enquadramento no art. 28 da lei aqui debatida, mais de 20% de pessoas poderiam ter suas acusações por tráfico extintas. Segundo, é preciso garantir a incorporação de quem é afetado/a pelo mercado de trabalho para que essas pessoas reconstruam suas vidas.

Rediscutir a política de drogas no país é, também, discutir reparação racial.

A declaração de inconstitucionalidade do art. 28 da Lei 11.343/06 pode ser uma etapa importante no debate sobre reforma do sistema criminal e política de drogas no país, razão pela qual precisamos estar atentos e fortes.

*Bolívar Kokkonen dos Santos é advogado e mestre em Direito pela Universidade de Brasília. Pesquisa sobre políticas públicas de segurança e racismo, com ênfase no uso de novas tecnologias para fins de policiamento.

**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato - DF.

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Edição: Flávia Quirino