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DF: Organizações atuam pelo direito das pessoas em situação de rua no SCS

Banheiro comunitário e roda de conversa semanal são algumas das ações realizadas na quadra 5 do Setor Comercial Sul

Brasil de Fato | Brasília (DF) |
Realidade das pessoas em situação de rua é um espaço que as políticas públicas estão falhando, diz ativista - Foto: Camila Araujo

Um grupo de pessoas se reúne na altura da quadra 5 do Setor Comercial Sul toda sexta-feira, às 9h, para conversar com outras pessoas, estas em situação de rua ou que estão de passagem por ali.

Este encontro é chamado de “Café Com Escuta” e é realizado desde 2019 para criar “vínculos”, como explica a servidora pública federal, Márcia Caldas, que é psicóloga e encabeça a iniciativa de forma voluntária.

“Nossa intenção não é caritativa, mas sim de criar vínculos com quem está em situação de rua. A nossa intenção é que as pessoas cheguem, façam um lanche e criem vínculos, a partir da escuta, que talvez possam fazer a diferença em suas vidas”, destaca Caldas.

Inicialmente vinculada ao coletivo Observa PopRua, da UnB, o Café Com Escuta busca ouvir as histórias das pessoas e atua “por vidas mais dignas e pela implementação de políticas públicas existentes”. Alguns dos participantes, entre aqueles que usam drogas, “nos esperam e relatam que ficam felizes pois, quando estão no café, ficam sem beber ou usar droga”, diz Márcia.


Márcia Caldas, idealizadora do Café com Escuta / Foto: Camila Araujo

“Essa troca de afetos entra num espaço que a política pública está falhando, além de possibilitar construções de protagonismos nessas pessoas”, comenta a servidora. 

Mas não é só de afeto que se faz o encontro. Ali, também circulam representantes do estado e de outros segmentos da sociedade civil. No último dia 18 de agosto, que antecedeu o Dia Nacional da Luta da Pessoa em Situação de Rua, estavam presentes representantes da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), da Defensoria Pública Federal, do Tulipas do Cerrado – uma rede de redução de danos e de profissionais do sexo do DF –, do Movimento População de Rua do DF, dos gabinetes dos deputados distrital Gabriel Magno (PT) e federal Erika Kokay (PT) e do Instituto No Setor.

Estudantes da Universidade do Distrito Federal e trabalhadores do Consultório na Rua – estratégia do Ministério da Saúde para ampliar o acesso da população em situação de rua aos serviços de saúde –, também compareceram ao encontro.

José Salustiano, de 40 anos, concorda com Márcia quando diz que “pessoas em situação de rua têm condições de se organizarem e de serem protagonistas de suas vidas”. Natural de Brasília, ele trabalhava como vendedor ambulante na Rodoviária do Plano Piloto em 2018 quando, diz, após uma abordagem policial “violenta”, passou a ficar em situação de rua.


José Salustiano é um dos responsáveis pela manutenção do banheiro comunitário / Foto: Camila Araujo

Ele conta que já havia estado na rua antes, onde acumulou cerca de 4 anos nessa situação. Estudando na Escola Meninos e Meninas do Parque – iniciativa que busca garantir o direito à escolarização de jovens e adultos em situação de rua há 28 anos no Parque da Cidade, em Brasília – conheceu Rogério Barba, do Instituto Barba na Rua, que o apresentou ao Instituto No Setor.

O No Setor, por sua vez, é uma organização sociocultural que atua desde 2018 no SCS. O instituto abraçou a manutenção do banheiro comunitário, localizado na quadra 5, por meio do programa Adote uma Praça, do governo do Distrito Federal. 

Em parceria com a Associação de Comerciantes e a Administração do Plano Piloto, o No Setor mantém os custos de três pessoas que trabalham no banheiro, além dos custos da manutenção da estrutura e dos produtos e materiais de limpeza. Uma das pessoas que trabalha ali é Salustiano, que saiu das ruas e atualmente é dono de uma pequena empresa do setor de limpeza.  

O banheiro soma uma média de 200 banhos por semana, e tem um custo mensal de manutenção. Uma parte, a conta de água e de luz, é custeada pelo governo do DF. A outra parte dos custos é paga com a ajuda de doadores por meio de uma vaquinha virtual https://benfeitoria.com/projeto/contribuanosetor.

A plataforma arrecada pouco mais de R$ 1.000 por mês e uma das metas é levantar R$8 mil por mês para ampliar o horário de funcionamento do local. Atualmente o banheiro comunitário funciona de segunda a sexta-feira, das 9h às 16h, e o uso é gratuito.
 


Banheiro comunitário é mantido pelo Instituto No Setor, com ajuda de doadores / Foto: Camila Araujo

Contexto no DF

Uma pesquisa da então Companhia de Planejamento do Distrito Federal, atual Instituto de Pesquisa e Estatística do Distrito Federal, estimou em 2022 que existem 2.938 pessoas vivendo em situação de rua por aqui. O levantamento foi feito em parceria com o Fundo de População das Nações Unidas e com a Secretaria de Desenvolvimento Social (Sedes) e contou com apoio da Secretaria de Economia (Seec) e da Câmara Legislativa (CLDF). 

Em fevereiro de 2023, um novo estudo apontou que Brasília tem 7.129 pessoas vivendo em situação de rua, o que coloca a capital federal entre os municípios brasileiros com a maior população nesta condição, ficando em 5º lugar no ranking nacional. 

As informações são do Observatório Brasileiro de Políticas Públicas com a População em Situação de Rua e do programa Polos, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

Para Joana Basílio, 38 anos, do Movimento da População de Rua do DF, a situação em Brasília está “precária” e o primeiro dado teria sido, segundo ela, publicado para “abafar a situação real”, com muitas famílias, mulheres e crianças entrando em situação de rua. 

O Centro Pop de Brasília, por exemplo, segundo ela, tem capacidade para atender 150 pessoas por dia, mas recebe mais de 600. Sobre isso, a reportagem questionou a Sedes mas ainda não obteve resposta. Quando e se houver, atualizaremos a matéria. 

Joana é brasiliense e viveu dez anos em situação de rua, até 2013, quando recebeu apoio de um serviço de assistência social do governo. Ela conta que nessa época ia com frequência ao Centro Pop de Brasília, onde foi encaminhada para o Cidade Acolhedora, um Serviço de Abordagem Social da Secretaria de Desenvolvimento Social vigente à época. Ali, foi formada e contratada, sendo “a 28ª facilitadora", destaca. 

No projeto, os facilitadores eram pessoas que já viveram na rua e cuja tarefa era a criação de vínculo da população com a equipe técnica. 

Ela conta que foi ali que adquiriu conhecimento político: “fui sendo emponderada”. Em 2015, participa do 3º Encontro Nacional da População em Situação de Rua, realizado em Brasília, e entra para o movimento. Depois, se afasta por quatro anos, retomando a militância em 2022 quando participa do Festival Cultural da População em Situação de Rua, em Belo Horizonte (MG).


Joana Basilio está a frente do Movimento da População de Rua / Foto: Camila Araujo

“O DF estava sem movimento social. Só tinha entidades e filantropia atuando com pessoas em situação de rua”, comenta, explicando que o “trabalho do movimento é buscar a inclusão social das pessoas em situação de rua, para que elas acessem seus direitos”. 

O Estado, protesta Joana, não quer se responsabilizar por essa população. “Somos pessoas reais, sangramos, mas o Estado não quer essa responsabilidade. Então temos que ir lá bater na porta e dizer que estamos aqui”, argumenta. 

Saúde mental

Para a militante, uma das soluções para garantir dignidade a pessoas em situação de rua é a “moradia com acompanhamento biopsicossocial”. O termo biopsicossocial remete a uma abordagem multidisciplinar na saúde que compreende as dimensões biológica, psicológica e social de um indivíduo.

Afinal, um bom acompanhamento da assistência social do estado pode tirar pessoas de situações de vulnerabilidade – social, econômica, emocional. Foi o que aconteceu com Adelson Santos, de 47 anos, que ficou 4 anos nas ruas, entre 2004 e 2008. 

“Eu saí da rua graças a um abraço”, diz ele, e acrescenta: “literalmente graças a um abraço de uma assistente social do Centro Pop. Não foi pelo banho, pelo alimento ou qualquer um desses recursos. Ela me mostrou que eu era um ser humano, o que me comoveu e levantou minha autoestima para querer sair da rua”.


Adelson Santos já esteve em situação de rua e, hoje, continua frequentando o SCS / Foto: Camila Araujo

Ali, um mundo se abriu para ele. Foi onde conheceu o Teatro Dulcina, localizado no CONIC, o Centro de Atendimento Psicossocial (CAPS), e a Revista Traços. “Conheci a cultura, enfim”. 

Adelson conta que tem ansiedade, depressão e faz tratamento para não voltar a usar drogas ou voltar para as ruas, já que “a rua é um segundo vício, não é só a droga”. Por isso, ele diz que o CAPS é sua segunda casa. 

Em um projeto de moradia do GDF, ele afirma que foi colocado para morar numa kitinete na favela Sol Nascente, na Ceilândia, num prédio que abrigava outras 12 famílias, todas com problemas de vício em drogas. “Jogar famílias dentro de um prédio sem assistência nenhuma você tá colocando essas pessoas numa cracolândia”, opina. 

A psicóloga Márcia Caldas lembra que é preciso escutar os desejos individuais e singulares de cada pessoa na construção e implementação das políticas públicas para as pessoas em situação de rua. “Se te oferecerem um local longe, às vezes você não vai querer morar. Você só fica num lugar quando cria laços e para isso é preciso ter coisas que lhe agradem e lhe façam sentir seguro”, comenta. 

Ela destaca ainda que a droga é uma substância prazerosa e, quando a pessoa está na rua, é usada muitas vezes como forma de diminuir a fome, dor, solidão e miséria. “O problema é a relação da pessoa com a droga, e isso precisa ser levado em consideração na hora de pensar políticas públicas, precisa ser tratada como problema de saúde pública  e não de segurança pública”. 

Para Márcia, há uma série de medidas que precisam ser implementadas para garantir dignidade às pessoas em situação de rua, entre elas: 

- melhorar o atendimento nos Centro Pop

- aumentar a integração do Serviço Único de Saúde com o Serviço Único de Assistência Social

- ampliar o programa Consultório na Rua

- aumentar o financiamento público para expansão do número de CAPS

- criar unidades de acolhimento e Centros de Convivência

- acabar com comunidades terapêuticas como principal ponto de tratamento para usuários de drogas – pois, segundo ela, são instituições asilares e “violadoras de direitos humanos, não respeitam a subjetividade das pessoas” 

- implementar moradias 

- proporcionar uma escuta sensível a essa população. 

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Edição: Flávia Quirino