Carolina Maria de Jesus pavimentou caminhos
A experiência artística que uma escola proporciona aos estudantes pode ser, grosso modo, entusiasmante ou traumática.
Como professor incumbido de formar professoras e professores para atuarem em escolas do campo e quilombolas, habilitados na área de Linguagens, escuto nas disciplinas iniciais muitos relatos de experiências negativas com a arte na escola, em geral porque foram feitas “pra inglês ver”, no caso, para os pais, nas festas da família, alguma coreografia feita às pressas, de bem baixa complexidade. Metade da turma aparece alegre nas fotos, e a outra metade de cara amuada, sem pudor mostrando que está ali porque foi obrigada, queriam mesmo era estar na correria da festa, comendo pastel e bolo.
Fato é que o trabalho artístico nas escolas do DF, salvo exceções de professores e direções de escolas obstinadas, é algo menos valorizado que a pintura dos muros, a reforma do parquinho, ou a compra de computadores para o laboratório.
É um detalhe, algo pautado pelo calendário de festas, um adorno, e não algo encarado em dimensão processual e no âmbito da formação estética.
Não fosse assim os incríveis festivais de cinema e teatro na escola ainda existiriam, as turmas, que não estão no regime integral, não teriam sido privadas das aulas de artes e educação física das equipes das Escolas Parque, etc.
Uma das notáveis exceções é o trabalho do artista e professor Wellington de Oliveira, da Sala de Recursos de Altas Habilidades/Superdotação do CEP Escola Técnica de Planaltina (DF), diretor da Cia do Imaginário.
Em “Quarto de Sonhar: Carolina Maria de Jesus” o público é apresentando a uma proposta cênica que narra e homenageia a história de vida e a obra de Carolina Maria de Jesus (1914-1977). A primeira escritora negra brasileira que superou o número de um milhão de livros vendidos, e traduzidos para diversas línguas, autora dos livros “Quarto de despejo: diário de uma favelada” (1960), “Casa de Alvenaria: diário de uma ex-favelada” (1961), “Pedaços de fome” (1963), “Diário de Bitita” (publicação póstuma em 1986), entre outras.
A proposta da Cia do Imaginário, em plena execução, é constituir um Laboratório de Altas Habilidades em Artes Cênicas. Segundo eles, algo inédito no Brasil, atuando como “um catalisador de projetos dos estudantes atendidos, articulando-os em produções teatrais coletivas, pautadas por reflexões éticas, estéticas e comunitárias”.
Impressiona em cena o vigor da atuação do elenco, a inteireza, a disposição, o tônus com que executam as coreografias, a consciência da postura em cena, a confiança com que executam suas frases coreográficas de forma independente uma das outras, cientes da presença dos espectadores.
Como professor e diretor Wellington consegue produzir resultados notáveis: envolve o grupo no processo criativo e constrói com cada integrante um resultado expressivo de trabalho corporal e vocal, que ganha força quando se manifesta de forma coletiva no palco.
A forma do espetáculo mescla elementos do teatro musical, com músicas cantadas e tocadas ao vivo, com dança, narrações em coro e solo sobre aspectos da vida e das múltiplas faces de Carolina Maria enquanto trabalhadora, na lida por sobreviver, alimentar e educar os filhos.
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O processo de construção do espetáculo, o debate sobre as opções de como e o que contar, vai transbordando em cena, em diversos momentos, procedimento épico de socialização de bastidores, como o momento em que o grupo discute a forma como deveriam encerrar o espetáculo e decidem por uma opção.
Algumas das formações cênicas reportam às marcações do Teatro de Revista, tradição cênica do gênero épico que se caracteriza por mesclar diversos recursos cênicos – a opereta, a burla, a comédia, a narração, a sátira, a música e a dança – com o objetivo de passar em revista o ano, ou uma data ou tema em específico.
O que se destaca na semelhança é o interesse do grupo querer contar, por meio da vida e obra da escritora Carolina Maria de Jesus, algo sobre o Brasil para o público, algo sobre nossos dilemas, sobre as marcas estruturais e entrecruzadas da desigualdade social e do racismo.
Em “Quarto de Sonhar”, começamos assistindo um cenário em formato de sala de aula, com carteiras e estudantes sentados que, de repente, se transforma em um palco, por meio do qual performam em cena adolescentes com notável desempenho cênico, pensando e encenando a história de uma das mais emblemáticas artistas brasileiras.
Carolina Maria de Jesus, por meio das linhas escritas, dos diários e das ficções que escreveu, pavimentou caminhos, por meio dos quais estamos construindo um país em que hoje temos mulheres negras e indígenas como ministras da Cultura, da Igualdade Racial, dos Povos Indígenas. Se a escritora não usufruiu destas possibilidades, ela certamente ajudou a criá-las.
Para o elenco de adolescentes que atuam no espetáculo, estudantes com altas habilidades, certamente a experiência teatral proporcionada por Wellington não é traumática, pelo contrário, poderá ser um divisor de águas, como foi para mim o trabalho do saudoso professor Cid Botelho, que nos idos dos anos 1990, passou abrindo as portas das salas de aula do Centro Interescolar de Línguas nº 01 e convidou as turmas para integrar o grupo de teatro que ele estava criando.
Um menino tímido, de 13 a 14 anos, se espantou e se encantou com o convite e lá foi ele para uma aventura com o teatro que dura até hoje, mais de três décadas depois.
Obrigado Cid, por abrir a porta de minha trajetória como homem de teatro e professor, e obrigado Wellington, por descortinar os dilemas de nosso passado, em cena, formando uma nova geração de artistas convicta de sua força e talento.
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*Rafael Villas Bôas é jornalista e professor da Universidade de Brasília.
**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.
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Edição: Flávia Quirino