Apenas a criação de Brasília, em 1960, levou para o Centro-Oeste do Brasil cerca de 3 milhões de pessoas, além de entradas e infraestrutura que impactaram diretamente em um dos maiores biomas do mundo, que é o Cerrado. No dia 11 de setembro comemora-se o Dia do Cerrado e o Brasil de Fato DF entrevistou o professor Reuber Albuquerque Brandão, da Universidade de Brasília.
Para Brandão, que pesquisa Conservação e manejo do Cerrado no Departamento de Engenharia Florestal (EFL), o avanço do agronegócio, as mudanças na legislação ambiental e a pouca atenção da sociedade brasileira são as principais causas do aumento no desmatamento deste bioma. "Já perdemos a luta pelo Cerrado", opinou o professor da UnB.
O Cerrado está presente no Distrito Federal e em 14 estados brasileiros, ocupando 22% do território nacional e que alimenta oito das 12 grandes bacias hidrográficas brasileiras. De acordo com o Instituto de Pesquisas Espaciais (Inep), no primeiro semestre de 2023 o total de áreas sob alertas de desmatamento na Amazônia apresentou uma queda de 33,6%, enquanto no Cerrado houve um aumento de 21% no mesmo período.
Para o professor, além da atenção do atual governo estar voltada para a Amazônia, muitos fazendeiros adiantaram em promover desmatamento em razão da mudança política. Além disso, ele aponta ainda que a especulação imobiliária é quem apresenta o maior risco para a preservação desse bioma na capital do país.
Confira a entrevista:
Brasil de Fato DF - Primeiro gostaria que falasse sobre a importância de se ter um dia em comemoração ao Cerrado.
Reuber Albuquerque Brandão - Não sou muito otimista. Penso que é importante ter a data, é importante ter o registro, é importante reconhecer o Cerrado como um bioma importante. Então, é importante comemorar, mas também não reduzir a discussão para essas datas. No Cerrado aumentou muito o desmatamento, por causa da flexibilização das legislações estaduais.
Como ocorreu isso?
E o fato é que já perdemos a luta pelo Cerrado. Esse é o ponto. As pessoas hoje estão vendo esse aumento no desmatamento, no avanço da fronteira agrícola, é descontrolado essas tentativas de reduzir cada vez mais as áreas remanescentes naturais. O que estamos vendo hoje é resultado de um processo que aconteceu no passado: mudança no código florestal, a resistência de não criação de unidades de conservação integral do Cerrado durante os governos anteriores e a transferência dos licenciamentos de desmatamento para os estados. Então, não temos o que comemorar.
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E qual a importância do Cerrado para o Brasil?
Todo mundo já sabe que o Cerrado é o berço das águas. Sabe que essas áreas são as mais biodiversas do planeta. Já sabem a importância do Cerrado para a captura de carbono. Já sabemos disso tudo e mesmo assim a gente não protege [o Cerrado].
"Já sabemos disso tudo e mesmo assim a gente não protege [o Cerrado]."
Gostaria que explicasse um pouco mais sobre essa relação entre a expansão da fronteira do agronegócio, que atualmente se dá principalmente no Centro-Oeste e o aumento do desmatamento do Cerrado.
O Cerrado está quase todo dentro do Brasil. Tem um pouquinho de Cerrado no Paraguai, um pouquinho na Bolívia, mas mais de 95% do Cerrado está dentro do Brasil. E ele é um patrimônio biológico e global de conservação. Ou seja, ele é uma coisa única e está sendo muito ameaçado. Então os governos, o Estado e a sociedade brasileira falharam com o Cerrado. Porque era uma missão do Brasil fazer essa proteção, proteger esse patrimônio biológico do ponto de vista global. Já foi feito isso com a Mata Atlântica, e hoje tem apenas 10% original. É isso que vai acontecer com o Cerrado, tem apenas 3% de unidade de conservação integral.
E qual o percentual da Amazônia?
No caso da Amazônico é um pouco mais. Está por volta de 8% [de unidade de conservação integral]. Então é muito pouco e o Cerrado é menos. Agora a Amazônia tem outra proteção porque quando junta as unidades de proteção de forma geral ela fica mais protegida. Agora de proteção integral, que é a única categoria de conservação que efetivamente evita o desmatamento, é um problema muito sério e não vão criar mais áreas protegidas no Cerrado.
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E como funciona na prática as reservas de propriedades rurais no Cerrado?
Na verdade as reservas de propriedades rurais, seja por assentamentos ou fazendas não são uma unidade de conservação. É uma política de proteção da vegetação associada ao código florestal. E o código florestal previa 20% do Cerrado, mais a APP (Área de Preservação Permanente), que seriam as nascentes, as encostas e etc. Em 2012 quando fizeram aquela revisão do código florestal, modificaram isso profundamente. Então, o código florestal de 2012 permite sobrepor APP com reserva legal. Ou seja, se a propriedade tem muita, tem muita nascente, o cara vai e põe a reserva legal dele ali. Então, já diminui mais áreas para desmatar. E as áreas que já estavam todas desmatadas até 2008, todas elas foram anistiadas. Então, valeu a pena desmatar e foi isso que o código florestal de 2012 informou.
Valeu a pena desmatar e foi isso que o código florestal de 2012 informou.
Poderia fazer uma análise sobre as políticas nacionais do atual governo no sentido de garantir a conservação do Cerrado. E os avanços em relação ao governo Bolsonaro?
Comparar o um projeto extremamente anticonservação com um governo em que a conservação é mais discutível, é meio óbvio. Nesse ponto melhorou muito. Tivemos um governo anterior que o meio ambiente e conservação eram criminalizados, perseguidos. E aí mudou o governo e pelo menos a conservação tem sido discutida. Foram criadas unidades de conservação já por esse governo. Mas no imaginário da maior parte da sociedade brasileira o Cerrado não tem a mesma importância que a Amazônia.
Por que essa discrepância em termos de importância, entre Cerrado e Amazônia?
Na mentalidade da sociedade brasileira o que tem que conservar é a Amazônia e mesmo assim olhe lá, porque tem uma série de interesses em cima do tema amazônico.
E o que a sociedade brasileira não percebeu até hoje, é que o Brasil só é o detentor da maior biodiversidade do planeta, porque nós temos um setor de biomas fantásticos. Temos a Amazônia com sua importância e temos o Cerrado, a Caatinga e temos a Mata Atlântica que praticamente acabou. Só tem Mata Atlântica hoje onde era impossível plantar ou criar boi, nas áreas de montanha. Tem também o Pantanal e o Pampa. Então, tudo isso contribui com a diversidade brasileira, não é só a Amazônia, e as pessoas se esquecem do coletivo, do conjunto de biomas.
E mesmo na cabeça de muita gente com mentalidade progressista a questão ambiental se resume a questão social. As pessoas confundem muito conservar biodiversidade, com conservar as pessoas que estão lá no ambiente natural e são estratégias complementares, porque mesmo que tenham mudanças adicionais, que vão muitos anos numa área que esteja ali, essa comunidade tem interesse no uso da terra. Então, não pode reduzir, resumir a questão ambiental em uma questão socioambiental. É muito mais do que isso. É muito mais do que simplesmente a luta pela terra, que é uma pauta importante, uma pauta essencial, uma pauta que tem que ser enfrentada, mas é uma pauta que não sobrepõe, que não esgota a pauta de conservação das biodiversidades.
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O que justifica esse aumento no desmatamento do Cerrado, mesmo com políticas de preservação ambiental propostas no atual governo?
O Cerrado sempre esteve nas áreas de estados que são estados ligados ao agronegócio, são Goiás, Mato Grosso do Sul, Mato Grosso, Tocantins, Oeste da Bahia, Oeste do Piauí, Oeste do Maranhão, grande parte de Minas. São locais onde o modelo de ocupação aliado à monocultura é muito forte. E aí, foi dada toda atenção ao desmatamento ilegal na Amazônia e não ao Cerrado.
E a segunda questão, é que grande parte desses desmatamentos estão acontecendo dentro de propriedades rurais, que tem autorização para o desmatamento. Claro que tem ilegal também, mas muitos desmatamento legal. E houve casos em que caras falaram assim: 'cara a gente tem que desmatar correndo, porque se não esse governo [Lula] vai dar uma moratória da soja e vai fazer alguma coisa aí que vai impedir a gente de desmatar'.
Para finalizar, qual a situação do Cerrado atualmente no Distrito Federal?
De uma forma geral, o momento de proteger grandes áreas contra o desmatamento do Cerrado já passou. Agora no DF, tem ainda uma vantagem porque foram criadas grandes áreas protegidas, tem a Estação Ecológica de Águas Emendadas, o Parque Nacional de Brasília, a Fazenda da Universidade de Brasília, a Reserva do Roncador do IBGE, a estação ecológica no Jardim Botânico e a área militar da Marinha.
Agora o grande problema é que tem muita APA (Área de Proteção Ambiental). A APA é uma unidade de conservação muito frágil, porque não é de proteção integral e está muito sujeita a pressões. Então, a pressão no DF para a ocupação da terra é muito forte, mas por ter unidade de conservação de proteção integral o desmatamento tende a acabar ali. Porque é uma garantia de proteção diferenciada.
Qual é o maior risco para o Cerrado no DF? O avanço do agronegócio ou a especulação imobiliária?
O maior risco para o Cerrado do DF é a tentativa de mudar as categorias das unidades de conservação ou então criar mecanismos para ocupar áreas que estão atualmente com certo grau de proteção. Então, tem as ferramentas de planejamento territorial como o PDOT (Plano Diretor de Ordenamento Territorial), por exemplo, áreas que são mananciais, áreas que são de interesse para conservação, que seriam áreas importantes para corredores ecológicos e simplesmente colocam naquela região um novo perfil de ocupação que permite loteamento para atender interesses imobiliários.
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Edição: Márcia Silva