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Argentina sob risco: a direita fascista paira entre duas das três candidaturas com chance de vitória

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Milei, Massa e Bullrich são os candidatos com maiores chances na disputa eleitoral na Argentina - Reprodução/ Opera Mundi
Percebermos como os procedimentos da cartilha neofascista se repetem perversamente na Argentina

A Argentina está a menos de um mês da eleição que definirá a próxima pessoa a ser presidente do país. Pelas ruas a campanha é menos perceptível do que na rádio, na TV e nas redes sociais. Não vemos gente com adereços, camisas, panfletos, faixas. A bandeira argentina não foi monopolizada pela extrema direita, como no Brasil. Ela é vista em prédios públicos e é utilizada em alusão ao patriotismo esportivo, que anda em alta, depois da vitória argentina na Copa do Mundo de futebol.

O fato de a campanha não ser visível nas ruas não quer dizer que não exista polarização entre os polos da esquerda e da direita. Basta ouvir, ler ou ver as propostas de campanha dos discursos de Javier Milei e de Patricia Bullrich.  Enquanto Milei é o candidato associado com a onda de ascensão da extrema direita no poder, com bandeiras fascistas, revisionismo histórico, dolarização da economia, fim dos mecanismos de regulamentação, fiscalização e controle que garantem a conquista e manutenção de direitos, a candidata de direita, por efeito de contraste, parece mais de centro-direita do que a campanha dela, de fato, indica: muitas pautas do bolsonarismo são alavancadas pela candidata Bullrich, como a solução militar, punitivista e carcerária para o problema da segurança, o discurso de que o país está arrasado e que precisa de ordem, “agora e para sempre”, e o discurso que as escolas não podem ser alvejadas pela ideologização, e que é necessário também a imposição da ordem nas escolas: “Argentina tem de tudo, mas nós, os argentinos, não temos nada. Os argentinos têm tudo para ser um país ordenado. É agora, é para sempre”.

Um dos vídeos divulgados pela campanha da candidata Patricia Bullrich mostra a maquete de uma prisão de segurança máxima, iluminada por holofotes de vigilância, e a candidata de pé, pregando que o lugar final para os bandidos, corruptos, defendidos pelo kichnerismo, será aquele, para o agora e sempre: “Me comprometi a terminar com o caos desta Argentina arrasada. (...) Esse modelo penal será o destino final para os narco-traficantes, corruptos e assassinos que hoje gozam da impunidade e proteção dos políticos kichneristas”. É inevitável a comparação da maquete com campos de concentração. A retórica fascista que atesta terra arrasada para angariar o apoio e a fúria cega do ódio ao inimigo, no caso, os bandidos e os kichneristas, é evidente.

A propaganda de Javier Milei prega o tudo novo contra tudo que não deu certo: “Nós argentinos já nos demos conta que fazer uma Argentina distinta é impossível com o mesmo de sempre”, e busca capitalizar sobre o anti-kicherismo, e o sentimento de frustração diante, sobretudo, das dificuldades econômicas não resolvidas pelo atual governo. Diminuir o Estado é, novamente, a solução mágica e presidentes neoliberais responsáveis por momentos trágicos da Argentina recente, como Carlos Menem, são elogiados pelo deputado fascista e candidato Javier Milei.

A propaganda de Sergio Massa, o ministro da economia, candidato da situação, faz um apelo para a unidade da pátria, das forças constituintes da nação, mas não faz alarde nem atenta contra os riscos do fascismo: “Há problemas, é verdade, mas nem por isso vão deixar de investir na ciência, em hospitais, etc”. A continuidade se caracteriza pelo destaque da importância no investimento público em áreas estratégicas e...não muito mais que isso. Nos atos de campanha, os exemplos por vezes são mais enfáticos, como na inauguração de um hospital na segunda, 25 de setembro, em que ele compara os três candidatos a médicos cirurgiões que teriam que entrar numa sala de emergência para salvar um paciente: segundo ele, se a médica fosse Bullrich, o paciente morreria porque antes de ser atendido a médica cortaria “excesso de despesas” do hospital, numa crítica ao privatismo da candidata; se fosse Milei o médico, ele entraria com uma moto serra em vez do bisturi, numa alusão ao desastre que será a extrema direita no poder; e se fosse Massa o paciente estaria salvo pois os investimentos em saúde, etc, permanecerão.

Tal como no Brasil, o movimento cultural o argentino, ciente do que tem a perder com a eleição da direita fascista para a presidência, se mobiliza em defesa da democracia. No dia 24 de setembro, diversos segmentos da classe artística se reuniram na rua Corrientes, famosa pela quantidade de teatros, sebos e livrarias. Ao mesmo tempo, no festival internacional de cinema de San Sebastián, na Espanha, a delegação argentina, presente com vinte e cinco produções, fez um ato de protesto contra as declarações de Javier Milei sobre o que pretende fazer com o Instituto Nacional de Cinema Argentino (Incaa) caso eleito.

O sociólogo Atilio Boron, presente no protesto da rua Corrientes, na capital argentina, definiu, em depoimento para o jornal Página 12, a convocatória como uma autodefesa da cultura, porque “o que está em gestação no campo da direita fascista, na Argentina, é um retrocesso brutal. Estive analisando antecedentes na história e nunca vivemos um clima como este, ao menos desde o retorno à democracia. Creio que nem sequer na véspera do golpe de 1976 havia uma exaltação da morte como está ocorrendo hoje com a candidatura de direita. Me faz recordar o franquismo na Espanha que gritava: ´Viva a morte!´ Por isso a gente da cultura saiu as ruas hoje para defender as conquistas que são irrenunciáveis. É muito o que está em jogo, não apenas em termos culturais, mas também em termos sociais”.

Para o dramaturgo e diretor Maurício Kartun, presente no mesmo ato, em depoimento para o jornal Página 12: “A cultura é a única alternativa que temos de nos juntar em uma só energia. As vezes perdemos de vista que o artista, em seu trabalho individual, está condenado à sua condição de grão de areia e somente se juntando se torna duna. Precisamos nos tornar essa barreira de contenção frente a alguns perigos que começam a se manifestar”. Para o diretor do Centro de Cultura e Cooperação (CCC), Juan Carlos Junio, um dos organizadores do ato, este perigo para democracia e para a maioria do povo “ocorrem porque falam em liberdade mas na verdade atuam contra a ideia democrática de liberdade”.

A distância curta dos anos trágicos de governo Bolsonaro e do período da campanha eleitoral, em que o candidato começou como azarão e se sagrou vitorioso, nos permitem dimensionar os riscos da tragédia eminente em nosso país vizinho, ao percebermos como os procedimentos da cartilha neofascista se repetem perversamente na Argentina, nas campanhas de Javier Milei e Patricia Bullrich.

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*Rafael Villas Bôas é jornalista e professor da Universidade de Brasília.

**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.

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Edição: Flávia Quirino