Casos não são isolados, mas o normal de tais instituições, dado o seu caráter manicomial.
Mais um caso de violência em Comunidade Terapêutica (CT) foi noticiado em nosso país. Neste, em específico, a violência resultou em morte. O acontecimento se deu na CT Kairos Prime, que fica em Embu-Guaçu, no estado de São Paulo. De acordo com as informações divulgadas, o interno Onésio Ribeiro Pereira Júnior, de 38 anos, foi agredido até a morte com objetos de madeira por profissionais da referida CT. O caso foi registrado como homicídio, sequestro, cárcere privado e tortura. Segundo a polícia local, este foi o segundo caso de morte registrado na clínica só neste ano.
No Distrito Federal (DF) e Entorno, no ano de 2023, já temos várias denúncias veiculadas sobre violência, tortura, trabalho análogo à escravidão, desvio de verbas públicas, dentre outras irregularidades e crimes cometidos por CTs. O mesmo pode ser visto em regiões próximas, como no recente caso de resgate de mais de 50 pessoas de uma clínica de recuperação em Anápolis, no final de agosto.
Como esperamos ser possível de se constatar, não são casos isolados, mas o normal de tais instituições, dado o seu caráter manicomial.
Um dos casos do DF é o da ONG 'Salve a Si', já tratado em texto anterior desta Coluna. A referida ONG gerencia duas CTs, uma masculina e outra feminina.
Repasses de milhões
De acordo com dados disponibilizados no Portal da Transparência Nacional e no Portal da Transparência do Distrito Federal, apenas entre 2019 e 2022, ou seja, durante a primeira gestão de Ibaneis Rocha no Governo do Distrito Federal, e de Jair Bolsonaro na Presidência da República, a 'Salve a Si' recebeu R$ 937.440,15 da extinta Secretaria Nacional de Cuidados e Prevenção às Droga (Senapred), do também extinto Ministério da Cidadania, e R$ 2.400.000,00 do Fundo Antidrogas do Distrito Federal (Funpad), gerido pelo Conselho de Política sobre Drogas do Distrito Federal (Conen-DF).
Segundo o artigo “Comunidades Terapêuticas no Distrito Federal: ‘controle’ social e saqueio do fundo público”, a 'Salve a Si' recebeu, de 2014 e 2021, R$ 4.186.027,00 de recursos públicos só do Funpad. Todos estes dados fazem da 'Salve a Si' a segunda CT com o maior valor de repasse de verbas públicas do DF, atrás apenas da CT Caverna do Adulão.
Por conta das inúmeras denúncias veiculadas contra a 'Salve a Si' nos últimos meses, o Tribunal de Contas do Distrito Federal (TCDF) determinou no dia 09 de agosto a suspensão de repasses de verbas públicas à entidade. Além disso, determinou a inspeção no local.
Na nota de resposta à ação do TCDF, a Salve Si menciona que “irá demonstrar a devida prestação dos atendimentos aos acolhidos, que sempre foram e sempre vão ser a prioridade da 'Salve a Si'”. Contudo, ainda no início de agosto, um ex-interno da 'Salve a Si', registrou ocorrência na polícia ao ser agredido e ameaçado por dois homens, após ter denunciado desvio de dinheiro público da entidade.
Ora, essa é “a prestação de atendimento aos acolhidos”? É assim que eles sempre serão a “prioridade da 'Salve a Si'”?
:: Novas denúncias de violências escancaram irregularidades nas comunidades terapêuticas do DF ::
Violência e medida protetiva
Além disso, a violência na 'Salve a Si' não se restringe a usuários, sendo estendida também a trabalhadores e trabalhadoras da instituição. No dia 27 de setembro, uma assistente administrativa da instituição foi agredida verbalmente e ameaçada por um prestador de serviços da 'Salve a Si'.
A partir do registro do Boletim de Ocorrência, no mesmo dia, foi concedida medida protetiva para a trabalhadora, de modo que o funcionário da CT está proibido de se aproximar dela – com limite mínimo de distância fixo em 500 metros – e de contatá-la por qualquer meio de comunicação (presencial, telefônico, virtual – por exemplo, redes sociais, aplicativos de comunicação e e-mail – ou por intermédio de terceiros).
Cabe ressaltar que, como consta no referido Boletim de Ocorrência, é relatado que o funcionário da 'Salve a Si' tem um histórico de ofensas, ameaças e violência dentro da instituição. Há, por exemplo, outros Boletins contra ele.
O problema da 'Salve a Si' não se restringe “apenas” ao seu coordenador afastado. Não é um a questão individual, pessoal, mas uma lógica – asilar-manicomial, de segregação, violenta por si só – que tende a fomentar condutas igualmente violentas, irregulares etc.
A partir do exposto, questionamos: é com esses prestadores de serviços que a 'Salve a Si' diz garantir o cuidado de seus internos? É com este tipo de comportamento que a 'Salve a Si' tem assistido pessoas com necessidades decorrentes do consumo de drogas?
O que estamos esperando acontecer? Morte, como ocorreu na CT Kairos Prime, de Embu-Guaçu?
Até quando?
Nesse interregno, questionamos também o Conen, que, como vimos tem sido responsável por repasses milionários à ONG.
Queremos aqui provocar uma reflexão que, a nosso ver, deve ser seguida de um profundo exame de autocrítica de tal conselho: o Conen continuará fazendo vistas grossas e a chancelar tais violências?
Por mais que o Conen tenha acatado – como é de se esperar – a decisão do TCDF, assim como alguns de seus membros têm argumentado que as denúncias mais recentes se referem à CT feminina da 'Salve a Si', sendo que repassam dinheiro à CT masculina, não se trata da mesma ONG? Não se trata, portanto, de chancela o que tal ONG e seus integrantes têm feito?
Tudo o que relatamos acima sobre a 'Salve a Si' – e que tem sido noticiado em diversos veículos da região – é exemplo de uma “CT exemplar, pois seguia todas as normas exigidas e chegara num nível técnico extraordinário, [e] que isso era intocável”, como afirma um dos membros do Conen (também vinculado a outra CT), conforme consta em ata da sua última reunião.
A verba gerida pelo Conen tem sido direcionada integralmente às CTs. Ora, se trata de conselho gestor, democrático, que fomenta a participação e o controle social na gerência das políticas sobre drogas no DF ou um conselho das CTs e para as CTs?
Se a 'Salve a Si' quer “salvar” alguém – noção que só demonstra o moralismo presente em sua filosofia e prática – ela deveria, primeiro, estar interessada em salvar a si. E se salvar neste processo, não é se safar dele.
Pelo contrário, é fazer a devida autocrítica e defender um cuidado de fato, para além de retóricas, humanizado, não manicomial e que respeite às necessidades, singularidades e integridade das pessoas.
Ou seja, que tal cuidado – e não o moralismo salvacionista - seja ofertado na Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) por serviços não manicomiais, como os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), Unidades de Acolhimento, Residências Terapêuticas, leitos e enfermarias em hospitais gerais, dentre outros.
O mesmo vale para o Conen, o GDF, o governo federal – e para todos nós enquanto sociedade que naturalizamos e aceitamos a violência das CTs.
Se queremos nos salvar de tudo isso, que nos salvemos das CTs.
Os meios para isso nós já sabemos quais são e os temos desenvolvido nos marcos da Reforma Psiquiátrica brasileira.
Pelo fim das Comunidades Terapêuticas!
Por um DF sem manicômios!
Por uma sociedade sem manicômios!
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*Pedro Costa é membro do Grupo Saúde Mental de Militância do Distrito Federal UnB.
**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.
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Edição: Márcia Silva