O projeto privatista do governador Ibaneis Rocha (MDB) para a Rodoviária do Plano Piloto e da Galeria dos Estados avança na Câmara Legislativa do Distrito Federal (CLDF) e causa preocupação na sociedade civil.
Uma das organizações que há anos atua pela mobilidade urbana é o Movimento Passe Livre do Distrito Federal e Entorno, que tem como um de seus representantes o antropólogo e urbanista Paíque Duques. Em entrevista ao Brasil de Fato DF ele alertou para os perigos dessa privatização.
O antropólogo lembra que o projeto de privatização da Rodoviária e da Galeria dos Estados representa a entrega de um serviço público para servir a lógica de lucro da iniciativa privada. Segundo ele, apesar desse projeto ter sido apresentado pelo governador Ibaneis Rocha, ele já vinha sendo gestado por governos anteriores.
“A sociedade civil é o setor que está sendo excluído definitivamente da gestão do espaço público, porque se trata de uma concessão do governo para uma empresa privada, onde a sociedade civil tem um papel, no máximo, terciário”, avaliou Paíque.
Ao falar especificamente da privatização da Galeria dos Estados, ele observa que o Plano Piloto é um local hostil para população negra e periférica, com algumas “fissuras urbanas”. “Uma eventual privatização da Galeria dos Estados vai impactar violentamente o setor cultural, o movimento underground, o skate, as festas de organização da contracultura e da da cultura negra da cidade, o samba, etc.”, completou.
O Movimento Passe Livre defende um novo modelo de transporte público para o Distrito Federal. Segundo Paíque, o atual modelo em que o governo libera subsídios milionários para as empresas privadas de ônibus, promove uma “extorsão de dinheiro e de recursos da classe trabalhadora".
Brasil de Fato DF - Qual o principal impacto que o projeto privatista da Rodoviária do Plano Piloto deve causar para os usuários do transporte público da cidade?
Paíque Duques - Os impactos para os usuários de transporte público com a privatização da Rodoviária são diversos. Não sei se é razoável dizer que vai ter um principal impacto. Vamos ter um eixo central de problemas, que é a privatização da Rodoviária, que há de fazer um espaço que atende um serviço público ser organizado de acordo com o interesse privado. Ou seja, ser organizado de acordo com interesses do lucro.
E isso certamente vai fazer com que o preço dos diferentes veículos, dos diferentes produtos que são comercializados na Rodoviária aumentem, dado que o interesse privado vai tentar extrair mais lucros dali, possivelmente aumentando [os preços] das concessões. Isso também deve aumentar um tipo de violência, da segurança, dado que deve-se transformar a segurança pública para um tipo de segurança privada.
Como isso pode afetar a violência?
Essa mudança não vai estar, necessariamente, interessada com a qualidade e conforto dos usuários e usuárias da Rodoviária, mas sim com uma ideia de uma erradicação por meio da violência, quando pensamos nos moradores de rua, nas pessoas pobres. E as próprias empresas da Rodoviária que podem passar por algum tipo de vigilância. Então, haverá um aumento da militarização do espaço da Rodoviária.
Essa privatização pode afetar também o acesso das pessoas à Rodoviária?
Sim. Outro tipo de impacto que certamente vamos ver é nas formas de acesso. Nós vamos passar por algumas modificações grandes, se esse projeto for aprovado como previsto e passaremos por algumas modificações na forma de acesso e nos tipos de acessibilidade ali presentes, podemos perder esse caráter amplo de circulação na Rodoviária.
Certamente no tipo de conluio com empresários até no próprio exercício da democracia. A rodoviária é um palco tradicional de manifestações públicas populares.
Grande parte do fruto dos movimentos por transporte, tal qual nosso movimento, Movimento Passe Livre, mas outros também. E certamente o espaço da Rodoviária, como é espaço público, vai ser muito prejudicado. Então, tudo está nesse sentido da mudança do horizonte, do centro da cidade para uma perspectiva privada.
Por que o Movimento Passe Livre e outros movimentos sociais populares estão se mobilizando contra a privatização? Qual importância dessa mobilização da sociedade civil?
Nós estamos lutando contra, porque aí nossos interesses são diretamente contrários, antagônicos, à ideia de uma privatização do espaço público.
É relevante dizer que o projeto de privatização da Rodoviária nasce no governo do PSB, que é o governo do Rodrigo Rollemberg [ex-governador do DF), que apresenta essa primeira proposta, que hoje está em curso. Ela é apresentada definitivamente nesse governo [Ibaneis], mas parte de um projeto anterior da elite do DF, que vem ali com algumas finalizações, ainda no governo [Joaquim] Roriz, um primeiro esboço disso no governo [José Roberto] Arruda. A ideia de talvez uma PPP para a gestão de espaços públicos no governo Agnelo [Queiroz] e uma proposta específica de concessão/privatização da Rodoviária no governo Rollemberg.
O centro do que está em debate é uma concepção de gestão da cidade, de que a cidade é melhor gerida por empresário, do que pela população, do que pelos setores públicos, do que pelos conceitos populares, do que pelas organizações e pela sociedade.
Se trata justamente de uma luta pela forma de ação da cidade, pela forma de organização da rua. Essa é a grande questão que está em debate.
A sociedade civil é o setor que está sendo excluído definitivamente da gestão do espaço público, caso essa proposta seja aprovada, porque se trata de uma concessão do governo para uma empresa privada, onde a sociedade civil tem um papel, no máximo, terciário.
Então, a importância da sociedade civil se mobilizar é justamente porque essa nossa mobilização é a constituição, de fato, o Estado na gestão do espaço público pela sociedade civil, que é o que a gente acredita.
A Galeria dos Estados também integra o projeto de privatização enviado pelo Executivo. Qual o impacto para o setor cultural?
O Plano Piloto é um espaço estatal de domínio tecnocrata e voltado para a segregação da população preta, pobre, periférica. O Plano Piloto é essencialmente isso. Ele já é um espaço de alguma forma hostil para a população preta, pobre, periférica. É relevante fazer essa crítica ao modernismo e a forma como o Plano Piloto foi construído para não entrar em uma romantização ufanista que o Distrito Federal é uma cidade extremamente violenta e segregada.
Dentro desse espaço violento, segregado, por meio do planejamento urbano, que é o caso do do Plano Piloto, dentro da realidade do Distrito Federal e do Cerrado existem algumas fissuras urbanas. Um conceito de fissura urbana, um conceito do urbanismo, que são espaços onde esse tipo de segregação perde impacto e possibilita alguns tipos de disputa.
O centro do Plano Piloto é um desses espaços permeados de fissuras urbanas, ainda que seja espaço muito segregador, muito violento, ele possui fissuras urbanas. E uma delas é justamente a utilização cultural, a utilização do Centro da cidade como espaço de organização cultural, manifestação política, trânsito e encontro de pessoas. É uma das fissuras dentro do sistema de dominação, que é o Distrito Federal.
Então a privatização desses espaços talvez seja uma tentativa de redução dessas fissuras urbanas. E essa fissura urbana aí a gente pode entrar um pouco nela porque ela também está permeada de conflitos. Se na Galeria dos Estados Rodoviária, Conic, Praça Zumbi dos Palmares, parte do Conjunto Nacional se organizou boa parte, ou se encontrou uma boa parte das organizações culturais, negras, periféricas e da contracultura da cidade. Ou seja, essa importância desses espaços para a cidade, para o encontro dessas culturas periféricas, negras, em alguns momentos.
Por outro lado, há também uma privatização dali, por meio de eventos privados, que se organizam em torno da cultura, mas que não necessariamente têm interesse na promoção e manutenção do movimento cultural. Então, nós temos sempre essa dinâmica e dubiedade.
A privatização da Galeria dos Estados tem um impacto sobre esse tipo de fissura urbana e de movimentação cultural que está dentro da cidade, se trata fundamentalmente disso. A cultura não vai morrer com a privatização da Galeria dos Estados, nem o setor cultural vai acabar por meio disso, porém, certamente uma eventual privatização da Galeria dos Estados vai impactar violentamente o setor cultural, o movimento underground, o skate, as festas de de organização da contracultura e da da cultura negra da cidade, o samba, etc.
E esse espaço certamente vai passar ser submetido a mais um tipo de lei violentíssima de lei de silêncio também por uma elitização.
O governo Ibaneis tem subsidiado sem contrapartidas as empresas de ônibus. De que forma o Movimento Passe Livre entende o subsídio ao transporte público de Brasília?
Não vou dizer que o governo Ibaneis subsidia as empresas de ônibus sem contrapartida, porque isso dá uma uma ideia de como se tivesse um grande acordo público entre essas duas organizações e não se trata disso. Se trata de uma articulação política entre governo e empresários de transporte para voltar à cidade a extração de lucro da classe trabalhadora. As empresas não têm nenhuma contrapartida, porque a ideia de contrapartida é como se elas tivessem devendo algo. Elas são organizações fundadas para a extorsão de dinheiro e de recursos da classe trabalhadora. Então dado que elas fazem essa extorsão, com apoio e organização estruturada pelo governo, nós temos que mudar essa forma.
Não se trata de uma questão de um subsídio para o transporte público ser melhor utilizado. Nós temos que mudar a função do transporte coletivo. A função do transporte coletivo hoje é dar lucro para as empresas e o subsídio está orientado para esse lucro para as empresas.
Nós temos que mudar a função do transporte público, que é a de transportar pessoas e promover a mobilidade urbana. Essa é a conquista do direito ao transporte, pela qual nós lutamos.
A mudança dessa forma de compreensão do transporte público possibilitará que os recursos sejam cobrados da parcela mais rica da população. Nós estamos falando da classe A+, estamos falando dos bancos, do setor imobiliário, dos donos de iates e das construtoras. Nós estamos falando desse setor que tem que pagar impostos para financiar o serviço de transporte coletivo para que ele [transporte público] faça o papel de promoção da mobilidade urbana, que é transportar as pessoas na cidade. É assim que a gente entende.
Nós não achamos que esse modelo está legal e o subsídio tem que ser dado para as empresas. Ao contrário, a gente acha que a empresa que tem que executar o transporte tem que ser uma empresa pública do Distrito Federal, que no máximo frete os veículos das montadoras, para poder circular esse ônibus da cidade correto.
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Edição: Márcia Silva