Existe um passado histórico e geográfico nos contextos bíblicos que foi apagado. Isso não é à toa. As histórias do antigo testamentos se passam nas regiões africanas. Jesus nasce na Palestina, mas passa boa parte da sua infância refugiado no Egito. No filme 'Marighella', produzido e dirigido por Wagner Moura, o personagem 'Frei Henrique' interpretado pelo Pastor Henrique Vieira faz um questionamento que provoca uma boa reflexão: poderia uma pessoa branca se esconder em uma região de pessoas negras?
Então o que houve nesse processo?
Diante do avanço dos reinos e impérios, na construção dos projetos de poderes, a Igreja viu que ter na figura de um ser sagrado e nas histórias bíblicas pessoas e sociedades negras, poderia, possivelmente, criar uma certa resistência na opinião pública sobre as ações que iriam oprimi-las, subjugá-las e escravizá-las. Como posso fazer isso se aquele tom de pele me remete também a coisas divinas? Passa-se, então a produzir uma mudança de pensamento primeiramente através da cultura, usando da arte e das pinturas para apagar o negro daquelas histórias - inclusive de Jesus.
A consequência dessas ações foi a construção de uma teologia pensada por homens brancos que corroborou/corrobora com o genocídio do povo negro.
No primeiro livro da Bíblia, o livro de Gênesis, há o relato da primeira morte. A passagem diz: "Disse, porém, Caim a seu irmão Abel: “Vamos para o campo”. Quando estavam lá, Caim atacou seu irmão Abel e o matou. Então o Senhor perguntou a Caim: “Onde está seu irmão Abel?”. Respondeu ele: “Não sei; sou eu o responsável por meu irmão?” Disse o Senhor: “O que foi que você fez? Escute! Da terra o sangue do seu irmão está clamando. Agora amaldiçoado é você pela terra que abriu a boca para receber da sua mão o sangue do seu irmão.”
Não há como esquecer quase 400 anos de escravidão no Brasil, não há como esquecer, não há como esquecer o derramamento de sangue que acontece em nosso país, não há como esquecer os sangues de Marielle, João Pedro, Amarildo, Agatha entre tantas crianças, mulheres e homens que são vítimas do genocídio do povo negro.
O sangue dos oprimidos e das oprimidas clama diante de Deus!
Com essa consciência, pessoas se levantaram para construir a teologia negra. Citando aqui os Racionais: “Não adianta querer, tem que ser, tem que pá. O mundo é diferente da ponte pra cá”. Mulheres e homens negros é quem tem que falar do chão que pisam e como transformar esse chão. No campo da espiritualidade cristã, são as mulheres e os homens negros que devem dizer que teologia e qual espiritualidade seguir.
Teologia negra
Surgem, em meados da década de 60, os primeiros passos da sistematização da teologia negra. Na África do sul, um dos nomes mais conhecidos foi arcebispo anglicano Desmond Tutu, nos Estados Unidos, pessoas como Martin Luther King e James Cone, pessoas que lutaram contra o apartheid e a segregação.
O tema central da teologia negra é dar resposta a pergunta: “o que a mensagem bíblica tem a ver com a revolução do povo negro?”.
Enquanto o movimento fundamentalista superdimensiona a transcendência de Deus, ao ponto das pessoas entrarem na igreja e esquecerem do mundo, do sofrimento, das complexidades, das contradições; a Teologia Negra dá ênfase no Deus imanente.
A experiência, a história e a cultura negra são também fontes para fazer teologia, não somente as Escrituras. Há uma revolução na forma de interpretar a Bíblia. Quando olhamos para aquela história de Moisés e a libertação do povo que era oprimido pelo Faraó no Egito, enxergamos um marco fundamental: a ação de Deus em relação ao povo oprimido pela escravidão humana. A comunidade cristã passa a ser definida como uma comunidade oprimida que se une a Jesus em luta pela libertação da humanidade.
Na concepção da teologia negra, a negritude e todas reivindicações advindas do empoderamento que ela traz, faz parte da ontologia que está ligada a libertação da opressão. Nela, os seres humanos foram criados para a liberdade, e Deus sempre fica com o oprimido e contra o opressor.
Esse novo pensar teológico veio para quebrar os paradigmas e muros construídos por aqueles que exaltavam a branquitude e apagavam os negros das páginas da Bíblia.
Afirmamos que Deus é negro, porque não há espaço para um Deus sem cor em uma sociedade que sofre justamente por sua cor.
Indo um pouco mais além, e citando o samba-enredo da Mangueira de 2020 com o nome 'A Verdade Vos Fará Livre: Eu sou da estação primeira de Nazaré, rosto negro, sangue indío, corpo de mulher'. A Mangueira entendeu um dos princípios da teologia negra: Jesus se revela nas faces dos oprimidos.
Tendo em vista que a Igreja é a comunidade que participa com Cristo da obra libertadora ao decorrer da história, ela jamais deve estar ao lado da “lei e da ordem” que causam sofrimento. Seu chamado não é para aceitar como o mundo é, mas transformá-lo. Nas palavras de James Cone ao falar do papel da Igreja: “precisa se rebelar contra a maldade para que todos os cidadãos saibam que não precisam se comportar de acordo com as leis sociais injustas”.
Enquanto a escatologia (doutrina dos últimos tempos) da teologia branca propõem uma espera de um novo céu, a teologia negra já quer construir o amanhã de uma nova Terra.
Nas palavras de Du Bois em 'As Almas do Povo Negro”': “um futuro com esperança que não se conheça escravidão e racismo, uma manhã que tudo seja diferente pra comunidade negra, uma manhã em que não se possa pensar que um bebê negro que parte deste mundo ainda em tenra idade poupou-se de uma vida de sofrimentos”.
Apresentar e propagar a teologia negra é crucial em tempos em que o fundamentalismo se fortalece, organiza e avança.
Há muitos corações para serem conquistados e libertados das amarras fundamentalistas que cegam e ensurdecem.
Enquanto a teologia negra busca seguir os passos de Jesus e propagar um evangelho que luta por vida em abundância para todos, a necroteologia fundamentalista sustenta uma fé apática e com uma práxis morta.
*Gabriel Sales é coordenador da Frente de Evangélicos pelo Estado de Direito - DF.
**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato - DF.
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Edição: Flávia Quirino