Distrito Federal

autoestima negra

"Nosso futuro é ancestral", afirma atriz que dá vida à princesa negra Makeda em musical infantojuvenil

Além dos palcos, Graciana Valladares é arte educadora; espetáculo está em cartaz no CCBB Brasília até 4 de fevereiro

Brasil de Fato | Brasília |
Espetáculo "Makeda - A Rainha da Arábia Feliz" fala sobre ancestralidade, memória e identidade - Valmyr Ferreira

Até o dia 4 de fevereiro, crianças e adultos que passarem pelo Teatro do CCBB Brasília podem se encantar com o musical “Makeda - A Rainha da Arábia Feliz”. O espetáculo narra a história de uma princesa preta, que por meio de conversas com seu avô e do encontro com outros reis e rainhas negras, aprende lições de ancestralidade, memória e pertencimento. 

Quem dá vida à Makeda é a atriz, pedagoga e mestra em artes cênicas, Graciana Valladares. Em entrevista ao Brasil de Fato DF, ela fala sobre como é dividir a vida entre os palcos e a arte-educação, que realiza no projeto “Teatro na Zona Norte", na cidade de Cavalcante, no Rio de Janeiro. 

Graciana reconhece a importância e a responsabilidade do trabalho de levar representatividade para as crianças negras, que se enxergam nela no palco e, a partir disso, começam a sonhar com outros mundos possíveis. “Nós somos grandes inventores, escritores, pensadores, e ver esse lugar de potência é extremamente importante”, afirma.


A atriz e pedagoga Graciana Valladares dá vida à princesa negra Makeda na peça / Valmyr Ferreira

No espetáculo da “Rainha da Arábia Feliz”, a atriz representa uma menina curiosa, cheia de energia, que busca em referências pretas da família e de fora as respostas para suas perguntas. Através da abordagem positiva das características do povo negro, a peça traz identificação e autoestima para o público. “Mas não fala só com as crianças, fala com todo o público, de todas as idades, sobre ancestralidade, identidade, memória, a nossa relação com o outro”, promete.

Embora ainda não sejam tão comuns peças infantis que abordam a valorização da cultura negra, como é feito em “Makeda”, Graciana considera que esse cenário está mudando. E os passos vêm de muito antes. “A gente só está ali porque vieram antes de nós os mais velhos, que lutaram para que a gente pudesse subir no palco. Sempre quando eu subo no palco, acredito que eu não estou subindo sozinha. Estou subindo com muitas outras pessoas que estiveram antes de mim”, diz a atriz.

Confira a entrevista completa.


Brasil de Fato DF - Sobre o que é a história de Makeda - A Rainha da Arábia Feliz?

Graciana Valladares - É a história de uma menina que é uma princesa e que vai se tornar a grande rainha de Sabá. Fala também da relação dela com o avô, com o mais velho, e essa relação se passa de forma lúdica através da brincadeira, através de jogos, faz de conta. E fala dessa relação até ela virar uma grande rainha, mas ela só se torna essa grande rainha após conhecer outras referências, outros lugares, outras mulheres. E esse reencontro todo faz com que ela se permita se ver rainha. Eu acho incrível.

O que o público infantojuvenil pode aprender com a história de Makeda?

O público infantil vai aprender muito sobre representatividade, porque representatividade importa. Se ver ali como reis. Ver reis e rainhas pretos, que por muito tempo a gente não via. Por exemplo, eu na minha infância não vi referência preta, nem livros, nem bonecas, nem TV. As minhas referências negras eram minha família. E aí as crianças vão ter essa oportunidade de estar vendo outros reis e outras rainhas ali no palco. 

Lembro do primeiro dia, na estreia do espetáculo, a primeira fala que eu escuto de uma criança, com os olhos brilhantes, é: “nossa, mas é uma princesa preta!”. Aquilo ali me emocionou muito, muito, muito. Eu acho que é esse ponto que toca Makeda. Mas não fala só com as crianças, fala com todo o público, de todas as idades, sobre ancestralidade, identidade, memória, a nossa relação com o outro. Fala sobre amor, sobre reencontro, sobre partilha.

Dizem que as crianças são o futuro, mas o nosso futuro é ancestral. Nós somos futuros ancestrais. E Makeda mostra isso tudo e é um espetáculo incrível. Então, as crianças vão aprender muito sobre essa relação com os mais velhos, a relação com a sua autoestima, a relação de reconhecer e conhecer a sua própria história, sobre identidade.

A protagonista do musical é uma princesa preta, interpretada por você. Qual é a importância disso e como isso se relaciona com a construção da autoestima de crianças negras? 

Ser a protagonista desse musical é um presente imenso, porque se passa muito também pela atriz, a criança da atriz, que por muito tempo não se viu representada. Eu acho que a minha criança interior está saltitante de poder estar brincando de ser Makeda. E a responsabilidade de se tornar referência também para outras crianças pretas, de dizer: “cara, eu posso ser rainha, eu posso ser uma princesa”. Como ela [Makeda] diz: “só imaginar que sou uma”. 

Eu tenho vivência com crianças, eu trabalho com crianças também, além de atriz eu sou pedagoga. Teve uma criança num desses trabalhos que falou a seguinte frase: “ué, se lá no continente africano, Graci, existiam reis e rainhas e que as pessoas pretas são reis e rainhas, então todas as pessoas negras têm dentro de si reis e rainhas. Vou coroar todo mundo”. E a gente fez um projeto sobre isso. 


Peça "Makeda - A Rainha da Arábia Feliz" / Matheus Alves

E é isso: acreditar que dentro da gente tem essa autoestima, tem esse lugar de ser rei, de ser rainha, de ser protagonista da nossa própria história. Essa história que foi muito tempo roubada, parada, cortada. E se tornar potência. A peça Makeda fala disso: de olhar para a nossa história, mas um olhar para as nossas potências, não pro outro lado, que por muitas vezes é contada ou por muitas vezes a gente se vê ali por muito tempo e, dependendo do lugar, mostra só aquele lado. Sendo que nós somos grandes, nós criamos muitas coisas, construímos vários reinos, tanto em África como em outros lugares. Nós somos grandes inventores, escritores, pensadores, e ver esse lugar de potência é extremamente importante. 

E aí, quando a gente se vê potente, a autoestima cresce. A gente sabe quem a gente é. E quando a gente sabe quem a gente é, a autoestima fica ali no lugar certinho. Se ver, ver o nosso cabelo ali lindo, que é a nossa coroa natural, a nossa cor, as nossas características físicas sendo exaltadas, faz com que as crianças também se vejam e olhem para si e vejam assim: “cara, eu sou lindo, meu cabelo é lindo”.

Para você, qual foi o maior desafio e a maior alegria na realização desse trabalho? 

Tiveram alguns desafios, porque a cada projeto novo, a gente se depara com o desafio. E eu gosto de desafios, porque o desafio faz com que a gente cresça. A Makeda é uma personagem que tem muita energia. E na construção dela, como eu falei que eu lido com muitas crianças, eu tentei trazer várias crianças dentro de uma só. Eu observava o jeito de falar, o jeito de andar, o jeito de reagir. Então, dentro da Makeda tem várias [crianças]. E aí o desafio foi encontrar essa Makeda, né? Procurar essa Makeda, como construir essa Makeda, que é tão parecida comigo,mas também tem coisas que não. Mas ela tem uma energia. E isso foi um desafio: controlar a energia e canalizar essa energia nos momentos específicos. Um exemplo, por ela ter uma coisa de fogo, se fosse um elemento da natureza, de perguntar, de ser ativa, de jogar e corpo e tal. E isso pra mim foi um desafio, canalizar essa energia. 


Makeda é uma princesa negra cheia de curiosidade e energia / Matheus Alves

E a maior alegria é estar fazendo a Makeda. Eu falo que é um presente lindo que chegou pra mim, que eu tô cuidando com muito amor, muito carinho, porque ela fala não só de crianças, mas de adultos. Ela mexe com muito do nosso interior, muita coisa da gente. Ela fala com a gente. E eu digo também que os personagens acabam escolhendo a gente e eles chegam também para nos ensinar alguma coisa, mostrar pra gente alguma coisa, sabe? A ter coragem, a ter força, a acreditar mais ainda nos sonhos. E nunca desistir desse acreditar. Isso ela aprendeu com o avô dela e a Graci aprendeu com eles. Está sendo incrível esse espetáculo e eu tenho certeza que ele vai navegar nos corações das pessoas assim.

Ainda não é comum peças infantis voltadas para esse universo de valorização da cultura negra, como observa esse cenário no teatro?

Eu acho que estamos em um momento da sociedade em que estamos olhando para isso e que daqui a um tempo vai mudar. Só da gente estar se vendo no palco é muito importante. E para o público infantil, mais importante ainda. Eu sei porque foi uma luta para nós estarmos ali no palco falando. A gente só está ali porque vieram antes de nós os mais velhos, que lutaram para que a gente pudesse subir no palco.

Sempre quando eu subo no palco, acredito que eu não estou subindo sozinha. Estou subindo com muitas outras pessoas que tiveram antes de mim.

E é importante ter esse lugar, esse recorte do infantil e a relação com a cultura negra para esse público porque ali é o começo, né? Se a gente quer ver um futuro diferente, um olhar pro amanhã diferente, a gente precisa começar hoje. E começar hoje, a gente contando a nossa própria história. Sermos protagonistas da nossa própria história e não deixando que os outros contem nossa história. E para a criança, isso vai reverberar completamente diferente. Se eu tivesse tido essa vivência desde criança, com certeza o meu olhar seria completamente diferente para o mundo, pro que acontece, pra mudança, pra tudo. 


Makeda aprende lições de ancestralidade em conversas com seu avô / Matheus Alves

Eu acho que esse é o movimento. Trabalho muito com crianças, os meus trabalhos estão voltados para esse lugar de transformação através da arte. Seja na contação de história, seja nas escolhas dos trabalhos nos quais eu atuo. Nos últimos anos, eu tenho entrado em projetos que falam sobre a cultura negra e que exalta o nosso povo, que conta história do nosso povo, que a gente não conhece, que foi escondida, e que seja voltado também para infância. 

Então, esse cenário está aos poucos se transformando. Ainda não estamos no auge disso, mas a gente está fazendo o movimento. E é importante esse movimento para a transformação, para que deixe legados.

Você atua como arte educadora no Teatro na Zona Norte. Como funciona o projeto que utiliza o teatro como ferramenta pedagógica?

O Teatro na Zona Norte é um projeto social e artístico que acontece no bairro de Cavalcante, aqui na cidade do Rio de Janeiro. Ele é voltado para crianças e adolescentes, e eu trabalho uma metodologia afrocentrada. Uma metodologia que eu criei no meu processo de dissertação de mestrado, em que trabalho o eu, o outro, o espaço e a comunidade. E passa muito por isso tudo que eu falei sobre a questão da identidade, memória, ancestralidade, porque a maioria das crianças que fazem parte desse projeto são crianças pretas periféricas e que têm questões com autoestima. Então, trabalhar com eles essa questão, dizer que eles podem, que o mundo é deles, que tudo que eles quiserem eles podem realizar sim, mesmo que digam que não. Que eles são incríveis.

E aí você vê no palco as crianças e adolescentes criando cena, contando histórias, de forma que passa também por eles, porque na construção dos espetáculos do semestre a gente trabalha uma metodologia de projetos. Então, a gente tem essa base do eu, o outro, espaço e comunidade, mas no início a gente observa muito o que está acontecendo, qual o assunto que está acontecendo, e a partir do assunto os debates vêm, as pesquisas vêm, o texto vem. A dramaturgia é toda feita de acordo com o processo. E aí por exemplo, eu estava falando de cabelo, aí uma criança falou que sofreu racismo na escola, e que arrancaram o cabelo dela, e que falaram que o cabelo dela é feio, que chamaram ela de macaca. E a partir disso a gente transforma em arte. 


O espetáculo traz o teatro como meio de construção de autoestima positiva para crianças negras / Matheus Alves

Como uma responsável falou, o teatro na Zona Norte acaba sendo um lugar terapêutico, um lugar de cura. Quando a criança sofre isso tudo e transforma em arte e ainda cria música e diz: “meu cabelo é lindo, eu sou linda, eu sou preto maravilhoso”, é o que o Teatro na Zona Norte toca. A gente vai além da ferida que ele traz, modifica, transforma e a partir disso já estão em outro lugar. 

É o que eu falei: os desafios que fazem transformar, que fazem mudar, que fazem olhar para a vida de outra forma. Então, o Teatro na Zona Norte é um lugar em que trabalha a transformação de mundo. Se as pessoas são o mundo, tocar uma pessoa que for, a gente está transformando o mundo. Isso eu ouvi de uma pessoa que deu uma entrevista para a gente e depois disso também eu comecei a olhar para esse lugar. As pessoas são cada pessoa tem o seu mundinho. E a gente tocar uma pessoa, a gente está transformando aquela pessoa, seja para pensar, seja para ficar questionando, seja para criticar, mas tocou. E esse projeto acontece de forma voluntária. A gente ainda não passou em edital nenhum, a gente está com fé que esse ano vai acontecer, mas ainda não tem, é meio de comunidade mesmo. Família ajuda, amigos ajudam, e vamos para o nosso quinto ano. E a gente está muito feliz em fazer esse projeto aqui em Cavalcante.

Serviço:

Makeda - A Rainha da Arábia Feliz, O Musical

Local: Teatro do Centro Cultural Banco do Brasil Brasília

Endereço: SCES Trecho 02 Lote 22 – Edif. Presidente Tancredo Neves – Setor de Clubes Especial Sul

Temporada: de 12 de janeiro a 4 de fevereiro de 2024

Horários: sexta e sábado, às 17h, e domingo, às 11h e 17h

Ingresso: R$ 30 (inteira), e R$ 15 (meia para estudantes, professores, profissionais da saúde, pessoa com deficiência (e acompanhante, quando indispensável para locomoção), adultos maiores de 60 anos e clientes BB), à venda no site www.bb.com.br/cultura e na bilheteria física do CCBB Brasília, a partir de 05/01

Capacidade do teatro: 327 lugares (sendo 7 espaços para cadeirantes e 3 assentos para pessoas portadoras de obesidade)

Duração: 60 minutos

Classificação indicativa: livre para todos os públicos

:: Clique aqui para receber notícias do Brasil de Fato DF no seu Whatsapp ::

Edição: Flávia Quirino