A Estrutural, região administrativa (RA) que nasceu há 20 anos a partir da resistência de catadoras e catadores e chegou a abrigar o maior lixão a céu aberto da América Latina, hoje não tem coleta seletiva adequada. Esta é uma das tantas contradições de uma cidade localizada a apenas 15 quilômetros da sede do poder em Brasília, mas distante do acesso à políticas públicas e direitos.
Apesar do abandono estatal, a mobilização da população em busca de moradia e dignidade continua. “Eu tenho muita esperança, porque eu vejo muito forte o movimento e a ocupação da juventude e das pessoas que são da Estrutural”, afirmou ao Brasil de Fato DF a assessora técnica do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) e moradora da RA, Dyarley Viana.
A cidade é, de fato, jovem, tanto em tempo de existência, quanto em termos de população. Segundo a Pesquisa Distrital por Amostra de Domicílios (PDAD) mais recente, de 2021, a idade média dos moradores da Estrutural é de 27 anos. Dos 37.572 habitantes da RA, mais de 8 mil estão na faixa etária de 15 a 24 anos, a mais expressiva da pirâmide populacional. “Penso que as juventudes presentes na cidade podem reformular a forma de habitar e reescrever a história da Estrutural”, vislumbra a assessora.
Dyarley é ex-catadora de materiais recicláveis e avalia que o fechamento do lixão, em janeiro de 2018, embora tenha trazido mais pessoas e investimentos para a cidade, também foi responsável por aumentar a vulnerabilidade das famílias que dependiam da catação e do manejo do lixo para sobreviver.
Quase 30% dos moradores da Estrutural viviam em algum grau de insegurança alimentar nos três meses anteriores à PDAD 2021. Uma casa na RA abriga em média 3,5 moradores e tem renda domiciliar estimada em cerca de 2 mil reais, o que representa um valor médio por pessoa de R$ 695,40, segundo dados da pesquisa.
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Diante da invisibilização, a resistência histórica
Durante quase cinco décadas, de 1970 a 2018, o maior lixão a céu aberto da América Latina funcionou a apenas 15 quilômetros de distância da Praça dos Três Poderes. Atraídos pelas oportunidades geradas pela reciclagem dos materiais descartados, catadoras e catadores progressivamente ocuparam a área próxima ao Lixão da Estrutural em busca de sobrevivência e moradia.
No início da década de 90, havia cerca de 100 barracos construídos no local. Desde a época, os moradores começaram a enfrentar tentativas de remoção por parte do governo do DF, que justificava a ação em função da proximidade entre a “Invasão da Estrutural” e o Parque Nacional de Brasília, unidade de conservação ambiental. Apesar disso, somente em 2007 a região foi decretada como Área de Relevante Interesse Ecológico (ARIE).
Com o passar do tempo, expulsos das áreas centrais da cidade pela especulação imobiliária e aumento do custo de vida de uma cidade historicamente desigual, o número de ocupantes da área aumentou. Em janeiro de 2004, a Vila Estrutural foi transformada em sede urbana da recém criada Região Administrativa do Setor Complementar de Indústria e Abastecimento (SCIA).
“Mesmo com histórico forte de repressão, a população conseguiu ficar e se fixar nesse espaço a partir de estratégias complexas de luta”, ressalta o geógrafo, professor da rede pública e morador Fábio Pereira.
14 anos depois, em janeiro de 2018, o lixão que gerava sustento para mais de 3 mil famílias foi fechado e passou a receber apenas resíduos da construção civil. A promessa do GDF e do Serviço de Limpeza Urbana (SLU) era de que os catadores seriam redirecionados para cooperativas, que receberiam galpões equipados com maquinário de reciclagem.
Segundo Dyarley Viana, no entanto, o processo de organização dessas cooperativas foi “autônomo”, sem o devido acompanhamento do governo, e guiado por uma lógica de “produção”, “priorizando homens, que são mais rápidos, e familiares” dos líderes. Assim, diversos grupos, como pessoas com deficiência, idosos, pessoas trans, travestis e usuários de drogas, foram excluídos dos novos arranjos de trabalho.
A assessora destaca que o fechamento do lixão não afetou apenas os moradores que dependiam diretamente da catação, mas todo o comércio local. “Quando essas pessoas perdem a fonte de renda, outros mercados, como padaria, farmácia, distribuidoras, também são impactados”, diz.
A situação de vulnerabilidade para a qual os catadores foram empurrados aumentou o número de pessoas em extrema pobreza e em situação de rua. Segundo o PDAD 2021, 28,9% dos moradores da Estrutural passavam por algum nível de insegurança alimentar, 8,5% destes em fome absoluta.
Na cidade dos catadores, não há coleta seletiva
Em 2021, na cidade que nasceu do movimento de catadores, 70% da população não tinha coleta seletiva no recolhimento do lixo, que se espalha pelos bairros. A contradição levanta dúvidas sobre a eficácia da solução dada pelo GDF ao problema. Muitos catadores resistem e continuam coletando na Estrutural, armazenando os materiais nos quintais de suas casas, o que pode gerar riscos como a proliferação do mosquito da dengue.
Para Dyarley Viana, o poder público deveria considerar os catadores como “parte da solução e não do problema, considerando também a responsabilização de quem gera mais lixo”. Pagá-los pelo serviço que já prestam à cidade pode ser um dos caminhos.
Ela defende que sejam criadas campanhas de conscientização sobre o papel de quem trabalha nas ruas recolhendo lixo e materiais recicláveis. “Todo dia você produz lixo, todo dia você vai precisar de um catador”, argumenta.
Ainda segundo Dyarley, a discussão de política de resíduos sólidos e como isso se relaciona com o direito à cidade é vista como uma questão menor, porque afeta mais as áreas periféricas do que o centro. Neste local, “a coleta vai passar, outros [os catadores] vão ter que lidar com os seus lixos e ainda com o lixo do outro. E de um jeito bem curioso acaba sempre sendo pessoas pretas”. 75% dos habitantes da Estrutural são negros, o que a torna a RA mais negra do DF.
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Sem endereço, sem direitos
Outro desafio enfrentado pela população local é a falta de acesso à moradia adequada e à regularização das casas. Em 2021, apenas 31% dos domicílios próprios possuíam escritura definitiva registrada em cartório. Sem endereço formal, os moradores têm outros direitos básicos negados, como saúde, escola, saneamento e até entregas pelo correio.
“A população da Cidade Estrutural enfrenta uma gama complexa de desafios relacionados ao acesso à moradia, influenciados por fatores como o racismo institucional, questões de gênero, e a falta de vontade política em abordar efetivamente essas questões”, afirma o geógrafo Fábio Pereira. Segundo ele, as mulheres enfrentam desafios adicionais na busca por moradia digna.
“É uma coisa que não te dá garantia, porque volta e meia vem a patrola, os carros da fiscalização derrubar. O pouco que se tem vai tudo pro chão. Você fica sem teto, não tem muito pra onde correr”, relata Tatiana Santos, que passou 23 de seus 28 anos de vida na cidade.
Ela chegou à Estrutural com os pais, aos 5 anos de idade, quando a população ainda dependia de caminhões pipas para ter acesso à água, que carregavam em tambores apoiados na cabeça. Atualmente, Tatiana está desempregada e se desdobra em bicos para complementar o salário mínimo que o marido recebe. Mais da metade da renda do casal, que luta por uma casa própria, é destinada ao pagamento do aluguel. “A gente faz milagre com esse dinheiro”, afirma.
Nos primeiros anos, as moradias da chamada Vila Estrutural eram construídas pelos próprios moradores, muitas vezes de madeirite. Tatiana recorda de quando ainda não havia casa de alvenaria na cidade. Hoje, o material faz parte da infraestrutura de revestimento de 65,9% das residências.
“E aí tinha a época da lama. Quando chovia, era uma cachoeira na rua, entrava água dentro de casa. A gente acordava de madrugada para tirar água de dentro de casa com balde, subir os móveis”, conta. “E assim foi assistir a evolução da cidade, né? Desde quando chegaram as primeiras pedrinhas, paralelepípedos. Aí a primeira escola, que era de madeirite. Aí o postinho de saúde, que também era de madeirite”, relembra.
Atualmente, a Estrutural conta com duas Unidades Básicas de Saúde (UBS) e seis escolas públicas. Apenas uma delas, o Centro Educacional 01, tem Ensino Médio. Mais de 28% dos estudantes que moram na cidade se deslocam ao Guará, Cruzeiro e Plano Piloto para frequentar a escola.
O acesso à água e ao saneamento básico também são problemáticas levantadas pelos moradores. De acordo com a PDAD 2021, 79% dos domicílios recebiam abastecimento de água pela rede geral da Companhia de Saneamento Ambiental do Distrito Federal (CAESB) e 20% por gambiarra/gato. Já em relação ao esgoto, 77% das residências estavam ligadas à rede geral da CAESB, 7% declararam ter fossa rudimentar e 6,9% tinham esgotamento a céu aberto.
De acordo com o geógrafo Fábio Pereira, a situação reflete a “negação do direito à cidade”, que não se resume à distância física das áreas centrais, como acontece em outras RAs, mas também é definida pela “falta de infraestrutura básica, como saneamento”.
“O acesso limitado aos serviços públicos essenciais reflete uma lacuna na responsabilidade do Estado em garantir condições de vida adequadas para todos os cidadãos, contribuindo para a reprodução das desigualdades estruturais”, afirma. O professor defende que a concessão de escrituras das casas, embora sejam “um avanço”, precisa ser acompanhada pela “garantia de serviços básicos, como saneamento, construção de escolas, espaços de lazer e de formação profissional”.
Estrutural: lugar de acolhimento e sonhos
A imigração faz parte da história de Brasília, desde a construção. O deslocamento para o DF ainda é uma realidade para muitas pessoas em busca de melhor qualidade de vida. De acordo com o último PDAD, mais de 47% dos moradores da Estrutural tem origem em outros estados.
“E aí, onde morar dentro da cidade que é tão segregada e que tem tanta disparidade de renda? A população empobrecida busca uma moradia, porque moradia significa segurança, conforto. E a Estrutural é esse lugar, esse lugar de acolhimento”, observa Fábio.
Além de sinônimo de lar para quem vem de fora, a RA mais negra do DF também é lugar de sonhos. “O que eu sonho para Estrutural daqui uns anos é que foque bem na cultura, que o governo olhe melhor para as pessoas que vivem aqui em situação de vulnerabilidade, deixe mais acessível a questão da moradia. Isso não é querendo ser chique não, é o básico de viver uma vida com qualidade, com direitos”, projeta Tatiana.
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Edição: Flávia Quirino