Cultura, moradia, sustento, empoderamento e dignidade. É o que, há nove anos, a ocupação cultural Mercado Sul Vive, em Taguatinga, região administrativa do Distrito Federal, representa para moradores e frequentadores. Por meio de redes de solidariedade, formação popular e economia solidária, o movimento resiste à especulação imobiliária e luta por reconhecimento enquanto patrimônio cultural do DF.
Nas vielas do Beco da Cultura, como também é conhecido o local, pulsa a arte do encontro. Convivem e cocriam lado a lado saberes e tecnologias que atravessam o tempo e se reinventam. A ancestralidade das rodas de samba, de capoeira e de coco, do mamulengo e das violas inspira os jovens na vivência ballroom, nas batalhas de rima e no grafite.
“Movimentamos a cena cultural local dentro da comunidade há mais de 9 anos. O principal marco visível foi a revitalização e a transformação dos becos onde algumas lojas são ocupadas”, contou ao Brasil de Fato DF M4vi Afroindie, nome artístico de Maria Vitória, multiartista e produtora cultural de 24 anos que atua na ocupação desde o surgimento. Ela foi uma dos artistas e trabalhadores que ocuparam o antigo Mercado de Taguatinga, devolvendo vida às lojas que há anos estavam abandonadas.
Após o encerramento das atividades comerciais formais do mercado na década de 70, o território foi se transformando em um grande celeiro de expressões artísticas e organizações coletivas. Atualmente, o espaço é tomado por música, teatro, poesia, cinema e educação popular. Mas não deixou de ser um local de circulação econômica e de trabalho.
Na Ecofeira, realizada mensalmente no Mercado Sul, artistas e trabalhadores se reúnem para a comercialização de diversos produtos, sempre acompanhada de atividades culturais, como oficinas de batuque, pífano, capoeira e vogue. O outro festejo principal da ocupação é a Festa Junina, que acontece anualmente.
“Atualmente, movimentamos também a economia criativa e o empreendedorismo na Ocupação”, afirmou Maria Vitória, que expõe produtos de sua marca de cosméticos naturais na feira. “Esse espaço hoje em dia pulsa vida, arte, cultura, festa, trabalho e pão”, celebrou.
Dentre os artistas e trabalhadores que expõem suas produções na Ecofeira estão coletivos de audiovisual como O Retratação e o estúdio Molotov, a loja de móveis sustentáveis TempoEcoArte,o Espaço Cultural Casa Kaluanã, o espaço Cultural Casa Canoa Afro e Indígena, a Comedoria da Sônia, a Confeitaria Dream Cacau, a Terraria Alquimia cosméticos naturais e Samy do black.
Contra a especulação imobiliária, pelo direito à cidade
A origem do Mercado Sul se confunde com a de Taguatinga. Inaugurado em 1958 para ser um local de comércio e de feiras livres, o mercado atinge seu auge nos anos 60, sendo o principal centro de abastecimento da recém-criada cidade.
No entanto, a partir da década de 70, começa o declínio comercial. Com a chegada das redes de supermercado e o crescimento das avenidas Samdu e Comercial, o Mercado passa por um processo de esvaziamento, abandono e marginalização. Os becos são tomados pelo tráfico de drogas e pela prostituição, embora uma pulsante cena cultural já se fizesse presente em meio à boemia.
Em 90, com a chegada da família de Seu Dico, fabricante artesanal de violas, o Mercado Sul ganha um novo tom. Nos anos 2000, quem se achega é o mestre mamulengueiro Chico Simões, que leva a sede do Teatro de Mamulengo Invenção Brasileira para o local que passa a ser chamado de Beco da Cultura.
Com o passar do tempo, as lojas, fechadas há anos e sem cuidados, se tornam locais propícios para procriação de ratos e mosquitos, aumentando o risco de transmissão de leptospirose e dengue. Ao mesmo tempo, famílias sem moradia e artistas em busca de local para instalarem ateliês e oficinas começam a questionar o abandono dos imóveis inutilizados.
“O estopim da ocupação parte dessa insatisfação da vizinhança ao uso desordenado e da utilização do solo urbano sem função nenhuma, enquanto tinham famílias precisando de moradia e trabalhadores precisando de um espaço para exercer suas atividades de subsistência”, explicou Maria Vitória.
Em 7 de fevereiro de 2015, com o apoio do Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST), moradores e artistas ocuparam mais de dez lojas do antigo mercado. Assim nasce a Ocupação Cultural Mercado Sul Vive.
Os ocupantes usam como fundamento o Estatuto da Cidade, Lei nº 10.257/2001, que afirma que a propriedade urbana cumpre sua função social quando assegura o “atendimento das necessidades dos cidadãos quanto à qualidade de vida, à justiça social e ao desenvolvimento das atividades econômicas”. Segundo eles, quando o imóvel não cumpre essa função, ele “deve ser reordenado ao coletivo, ao bem comum da cidade”.
“Por acreditar que o direito de viver não deve estar submetido aos interesses da especulação imobiliária, que prefere os espaços fechados, decidimos ocupá-los e reabri-los com o propósito de recuperar mais um cantinho da cidade para a vida e convívio saudável e coletivo”, afirmou o grupo.
À sombra do despejo
Desde o início, os moradores do Mercado Sul vivem à sombra do despejo. Uma pessoa que se afirma dona das lojas busca a reintegração de posse através da Justiça.
Ao longo dos anos, os ocupantes tentaram diversas negociações. Uma das propostas era a de que o Governo do Distrito Federal (GDF) desapropriasse o terreno, restituindo o proprietário. Os moradores também tentaram pactuar, no poder judiciário, um aluguel social, mas o dono recusou.
“Depois do movimento cultural de ocupação, cessou o tráfico de drogas no local, tornando-se um local mais seguro e mais frequentado por conta dos eventos produzidos, melhorando a movimentação externa, o que por consequência fortaleceu o comércio local”, explicou Maria Vitória.
É com esse argumento que os residentes tentam convencer a justiça de que a posse e permanência deve ser garantida àqueles que revitalizaram, por meio de reformas e outras benfeitorias, o Mercado Sul.
Em 2022, o movimento conseguiu uma vitória judicial, trazendo mais segurança aos moradores, com a concessão de posse das lojas. O Tribunal de Justiça do DF e Territórios reconheceu que a ocupação “tem a nítida função de bem cultural da cidade” e “adequação social do uso da propriedade”.
A decisão foi dada em primeira instância e, portanto, cabe recurso. “É uma disputa judicial muito sutil e complexa, desafiadora para todes. Ainda há muitas etapas jurídicas a enfrentar”, avaliou M4vi.
“A ocupação mudou a nossa realidade”
“O Mercado Sul é uma grande escola de artistas”, definiu Ramona Jucá, nome artístico de Juliana Letícia da Silva Mendes, de 24 anos. A “audiovisionária” e maquiadora mora na ocupação desde os 15, quando chegou com a mãe em busca de moradia digna.
Sônia, a matriarca da família, nasceu na comunidade Rio dos Índios, em Ceará Mirim (RN) e chegou ao DF ainda criança para trabalhar como doméstica em casa de família. “Somos pessoas indígenas em contexto urbano e de retomada, pertencemos ao povo Potiguara de Ibirapi”, contou Ramona ao Brasil de Fato DF.
Foram muitos anos acompanhando a mãe em faxinas. Até que, em 2015, foram chamadas pelo movimento cultural para ocupar uma das lojas do Mercado. Atualmente, Sônia tem seu próprio negócio, a “Comederia da Sônia”, onde cozinha refeições para eventos. A tradicional feijoada da Sônia já é parada obrigatória nas edições mensais da Ecofeira.
“Sempre fui a filha da empregada. Hoje a gente se empoderou muito com a ocupação. Ela mudou a nossa realidade. Podemos trabalhar com cultura. A minha mãe, que não tem formação, mas tem o ofício, ela pode ensinar a fazer comida, a fazer crochê. E eu, agora formada em audiovisual, também posso ensinar”, relatou emocionada.
Casa de Onijá
Outra fonte de empoderamento para Ramona é a Casa de Onijá, coletivo de arte ballroom que nasceu no Mercado Sul em 2019, marcando a presença LGBTQIA+ na ocupação.
O ballroom é um movimento afro-americano e latino que celebra a diversidade de gênero, sexualidade e raça. Uma de suas expressões é o vogue, dança com movimentos inspirados em poses de modelos.
Na Casa de Onijá, além de oficinas de dança vogue, é oferecido acolhimento. “Tem também esse contexto de família, de acolher pessoas LGBTs”, explicou Princess Ramona Molotov Onijá, como é chamada na casa.
“A gente se organiza enquanto coletivo família para dar suporte e também fazer o corre artístico de ganhar dinheiro com a arte e criar um produto de dança”, completou.
No ano passado, o grupo levou as oficinas de vogue que acontecem na Casa de Onijá para o primeiro Ball no Universo Paralello, maior festival de arte e cultura alternativa da América Latina, que acontece na virada do ano em Pratigi, na Bahia.
“A Casa de Onijá é muito importante para mim enquanto jovem, por me empoderar dessa pose, dessa força. Hoje eu me reconheço como uma liderança jovem nesse território. Com muito respeito a quem veio antes de mim. E se eu fosse uma jovem que tivesse crescido a duas ou três ruas daqui, talvez eu não tivesse esse contato tão forte com a arte e talvez eu não conseguisse retomar tão forte a minha ancestralidade”, concluiu Ramona.
Luta por reconhecimento
Atualmente, o movimento luta pelo reconhecimento da Ocupação Cultural Mercado Sul Vive como patrimônio histórico e cultural do Distrito Federal. O grupo pleiteia a valorização não só dos bens físicos, como os grafites, instrumentos, móveis e outros objetos artísticos produzidos no local, mas também dos saberes e tecnologias desenvolvidos pelos moradores.
“Nosso intuito é preservar esse lugar histórico de Taguatinga e do DF tanto em sua dimensão arquitetônica, quanto na escala humana, com as vidas vividas aqui e a cultura que aflora há décadas desse lugar”, vislumbra Maria Vitória.
A reportagem entrou em contato com o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) para esclarecimentos a cerca do processo de reconhecimento do Mercado Sul, mas não obteve resposta.
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Edição: Flávia Quirino