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CLDF: participantes de audiência pública defendem presença de "valores cristãos" na educação

Reunião foi marcada por discursos "em defesa da vida e da família"; falas são criticadas por movimentos

Brasil de Fato | Brasília (DF) |
Audiência para discutir a participação da comunidade cristã na educação foi iniciativa do deputado distrital João Cardoso (Avante) - Rinaldo Morelli / Agência CLDF

Recheada de discursos “em defesa da vida e da família”, aconteceu nesta terça-feira (20), na Câmara Legislativa do Distrito Federal (CLDF), uma audiência pública para discutir a participação da comunidade cristã na educação. O encontro foi proposto e mediado pelo deputado distrital João Cardoso (Avante), que se autointitula “deputado católico”. 

Os participantes, em sua maioria representantes da igreja, defenderam que os “valores cristãos” precisam estar presentes na construção da política nacional de educação. O comportamento de alunos LGBTQIA+ e o homeschooling (ensino domiciliar) também estiveram em pauta. Não havia outros parlamentares presentes, mas a deputada Jaqueline Silva (MDB) enviou uma carta de apoio ao encontro. 

João Cardoso abriu a audiência afirmando que a educação surgiu no lar e se formalizou através da igreja católica, mas que hoje a escola é vista como a única referência do assunto. Ele defendeu que os religiosos devem “participar efetivamente” da comunidade escolar, inclusive da “formulação de conteúdo”, para que “não existam distorções quanto aos ensinamentos bíblicos e da igreja sobre a preservação da vida e da família”. 

A fala do parlamentar foi apontada como contrária à laicidade do Estado brasileiro, assegurada na Constituição Federal, que garante a proteção de todas as religiões, sem preponderância de nenhuma. A escola, enquanto instituição pública, também tem o dever de ser laica. 

“Ou seja, a religião não deve interferir na escola e na construção do conhecimento porque o conhecimento é, historicamente, produzido por todos e todas, não só pelo(a) professor(a). A escola é ambiente para a prática da laicidade e da pluralidade religiosa e de ideias”, explica a diretora do Sindicato dos Professores do DF (Sinpro-DF), Márcia Gilda.

O coordenador da Regional de Ensino de Sobradinho, Marcílio Almeida, afirmou durante a reunião que “a educação cristã não se contrapõe à ciência”. Em um tom mais ponderado, ele completou dizendo que a educação laica “não quer dizer que não podemos falar do cristianismo em sala de aula”, mas “permite que a gente fale e apresente também outras religiões”. 


Coordenador da Regional de Ensino de Sobradinho defendeu que educação cristã não é contrária à ciência / Rinaldo Morelli / Agência CLDF

Já a professora de Relações Internacionais da Universidade de Brasília (UnB) e coordenadora da Pastoral da Educação da Arquidiocese de Brasília, Tânia Manzur, defendeu que os valores da igreja católica são “fundamentais” e “universalmente aceitos” e, por isso, uma educação “séria e competente não pode abrir mão [deles]”. 

“A gente fomenta a defesa da vida, a atenção e o cuidado com a dignidade própria do ser humano desde a concepção até a morte natural”, afirmou a professora. A fala pode ser interpretada como um discurso contra o aborto.  


Tânia Manzur, professora da UnB e coordenadora da Pastoral de Educação, participou da audiência e afirmou que valores cristãos são "universais" / Rinaldo Morelli / Agência CLDF

Manzur criticou aqueles que mantêm a dimensão religiosa apenas na esfera privada e argumentou que “o professor católico tem que ser católico na escola, em casa, em qualquer lugar”, sob risco de, caso contrário, sofrer uma “dissonância cognitiva”. Ela defendeu ainda a representatividade dos católicos na “formulação, implementação e controle de políticas públicas educacionais”. 

Para Lucci Laporta, assistente social e militante transfeminista do coletivo Juntas, o posicionamento da professora não é adequado. Segundo ela, é fundamental que toda a sociedade participe da política de educação básica. 

“Se a comunidade cristã quisesse participar da formulação da política de Educação para defender esse direito a todas as pessoas, isso seria ótimo. Mas quando ela se organiza em base a dogmas religiosos, para cercear parte significativa da sociedade desse direito, isso passa a ser um atentado contra a laicidade do Estado, e consequentemente, à democracia”, afirmou ao Brasil de Fato DF.

"Modismo" LGBT

Durante sua fala, o deputado João Cardoso classificou o comportamento de alunos LGBTQIA+ como “situações que me preocupam” e “modismo”. Segundo ele, são jovens que “são mais fragilizados e que por isso vão pela cultura”. 

“São coisas que infelizmente estão difundindo na sociedade, padre, e que nós não sabemos o que pode acontecer”, afirmou, em tom conspiratório. O parlamentar comparou a ideia de que “garoto pode beijar garoto e menina pode beijar menina” ao “modismo” de fumar cigarro que acontecia durante sua época de escola. 


João Cardoso (Avante) se autointitula "deputado católico" / Rinaldo Morelli / Agência CLDF

Para ilustrar sua preocupação, o deputado contou que foi procurado por uma professora para relatar o caso de um estudante que pediu, em sala de aula, “para não ser mais chamada de Mônica, mas sim de Pedro”. Segundo João Cardoso, enquanto a escola e a mãe apoiaram o jovem, a professora, contrária à situação, foi “perseguida”. “Ela ficou preocupada de abrirem um processo disciplinar contra ela, sendo que ela agiu corretamente”, afirmou. 

Na visão da assistente social Lucci Laporta, a fala do parlamentar demonstra uma não aceitação do “novo momento histórico”. 

“Pessoas LGBT sempre existiram. Garotos sempre beijaram garotos e garotas sempre beijaram garotas. Pessoas trans sempre existiram. A questão é que agora tivemos avanços de direitos e de consciência social, ainda que muito insuficientes para superar a desigualdade, em especial para pessoas trans. Os fundamentalistas religiosos, então, na verdade não querem aceitar”, afirmou. 

Ensino domiciliar 

Outra pauta levantada pelo deputado que presidiu a audiência pública foi o homeschooling, modalidade em que crianças e adolescentes não vão às escolas e são instruídas pelos pais em casa. João Cardoso afirmou que é criticado por defender a prática, mas que visitou famílias que realizam o ensino domiciliar no DF e ficou admirado. 

Segundo ele, os “abusos” que podem acontecer, como o isolamento social do jovem e a abordagem de conteúdos inadequados ou insuficientes, são resultado da “falta de legalização”. “O objetivo é trazer para a legalidade para que o Estado possa fiscalizar”, defendeu. 


João Cardoso (Avante) é um dos autores da lei que possibilitava homeschooling no DF, prática que foi discutida na audiência pública e é rechaçada por educadores / Rinaldo Morelli / Agência CLDF

O discurso é reprovado por entidades ligadas à educação. Segundo a diretora do Sinpro-DF, o homeschooling representa um “retrocesso” para a prática da educação integral, dificulta o combate à violência doméstica e a fiscalização do poder público sobre a forma de lecionar. 

“Uma educação de verdade é aquela que propicia aos estudantes o convívio e a socialização com os colegas, a convivência com a diversidade, a oportunidade de vencer desafios e de desenvolver a inteligência interpessoal”, explicou Márcia Gilda ao Brasil de Fato DF. 

A Lei 6.759/2020, que possibilitava a educação familiar ou homeschooling no DF, foi considerada inconstitucional pelo Conselho Especial do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT) em julho do ano passado. O deputado João Cardoso foi um dos autores da lei. 

A decisão foi uma resposta à Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) movida pelo Sinpro-DF. O desembargador Alfeu Machado, relator do processo, concluiu que a lei afrontava a competência para legislar sobre educação, que é privativa da União e não pode ser feita por estados e municípios. 

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Edição: Márcia Silva