Distrito Federal

Coluna

O que estamos dizendo quando pedimos o fechamento do Hospital São Vicente de Paulo?

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"O prazo para o fechamento do HSVP acabou em dezembro de 1999, quatro anos após a publicação da Lei 975. Portanto, o HSVP é ilegal há mais de 23 anos!" - Foto: Brasil de Fato DF
Instituições como o hospital psiquiátrico, o manicômio, são irreformáveis

Sempre que pautamos a urgência de fechamento do Hospital São Vicente de Paulo (HSVP), inúmeras dúvidas e apontamentos são feitos. Muitos deles estão correta e honestamente preocupados com o que será feito a partir desse fechamento, qual é a saída, se as pessoas ficarão desassistidas. As dúvidas, quando bem-intencionadas, remetem ao que significa esse fechamento, qual o seu sentido e as possíveis consequências.

No texto anterior da coluna, a partir do debate do custo do HSVP, procuramos dar algumas sinalizações para este debate. Agora, avançamos um pouco mais sobre ele, apontando o que significa fechar o HSVP.

:: Qual o custo do Hospital São Vicente de Paulo ao DF? ::

Como temos afirmado e reforçado, o HSVP é ilegal. Sua manutenção pelo Governo do Distrito Federal (GDF) descumpre a Lei Distrital nº 975, de 1995. Segundo ela,

“Art. 3º A assistência ao usuário dos serviços de saúde mental será orientada no sentido de uma redução progressiva da utilização de leitos psiquiátricos em clínicas e hospitais especializados, mediante o redirecionamento de recursos, para concomitante desenvolvimento de outras modalidades médico-assistenciais, garantindo-se os princípios de integralidade, descentralização e participação comunitária”.

Como apontamos em artigo anterior desta coluna, o GDF gasta quase R$ 6 milhões mensais com a manutenção do HSVP, que concentra 68% dos leitos psiquiátricos da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) do DF. Ou seja, o “redirecionamento de recursos” e a “redução progressiva da utilização de leitos psiquiátricos em clínicas e hospitais especializados” não têm acontecido.

Além disso, a referida Lei também tem sido descumprida nos seguintes pontos:

“§ 2º Os leitos psiquiátricos em hospitais e clínicas especializados deverão ser extintos num prazo de 4 (quatro) anos a contar da publicação desta Lei”.

“Art. 4º Ficam proibidas, no Distrito Federal, a concessão de autorização para a construção ou funcionamento de novos hospitais e clínicas psiquiátricas especializados e a ampliação da contratação de leitos hospitalares nos já existentes, por parte da Secretaria de Saúde do Distrito Federal”.

Resumindo: o prazo para o fechamento do HSVP acabou em dezembro de 1999, quatro anos após a publicação da Lei 975. Portanto, o HSVP é ilegal há mais de 23 anos!

GDF descumpre leis

Não sendo suficiente, a manutenção do HSVP também descumpre a Lei Orgânica do DF, de 1993. Mais especificamente, a manutenção do Hospital pelo GDF descumpre o Artigo 211, que diz: “É dever do Poder Público promover e restaurar a saúde psíquica do indivíduo, baseado no rigoroso respeito aos direitos humanos e à cidadania, mediante serviços de saúde preventivos, curativos e extra-hospitalares”.

Ou seja, vemos na manutenção do HSVP e na grande quantidade repasse de verba pública a ele, o contrário do que se coloca na Lei, que seria a ênfase em serviços extra-hospitalares. Soma-se a isso a cobertura muito baixa dos serviços extra-hospitalares da RAPS do DF, como a dos Centros de Atenção Psicossociais (CAPS), que é uma das piores entre as 27 unidades federativas do país.

Além disso, também são descumpridos os seguintes parágrafos:

“§ 3º Serão substituídos, gradativamente, os leitos psiquiátricos manicomiais por recursos alternativos como a unidade psiquiátrica em hospital geral, hospitais-dia, hospitais-noite, centros de convivência, lares abrigados, cooperativas e atendimentos ambulatoriais”; e

“§ 4º As emergências psiquiátricas deverão obrigatoriamente compor as emergências dos hospitais gerais”.

Como apontamos, não só os leitos psiquiátricos manicomiais não estão sendo substituídos por recursos alternativos, como, por exemplo, unidades e leitos em enfermarias de hospitais gerais, centros de convivência, serviços de acolhimento institucional, Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), entre outros, como a maior parte das emergências psiquiátricas no DF têm sido realizadas em um hospital psiquiátrico, o HSVP no caso, e não em hospitais gerais, como requer a Lei.

Em suma, a manutenção do HSVP é um problema legal. E é um problema legal, porque é um problema ético-político!

Não por acaso, o horizonte da Reforma Psiquiátrica brasileira, e no DF, é o fim dos manicômios e a construção de uma rede substitutiva, com vários níveis de atenção e serviços, para sanar as necessidades assistenciais e de vida das pessoas que deles necessitam.

Isso se deve ao fato de que, se para produzir mortificação, é necessário “apenas” um serviço, o manicômio, ou seja, o hospital psiquiátrico, enquanto para fomentar e produzir vida, é necessária toda uma rede – e mais!

Fechar manicômio não é desassistir

Nesse sentido, quando clamamos pelo fechamento do HSVP, não estamos dizendo para jogar uma bomba no HSVP, destruir o lugar e deixar desassistidas as pessoas que estão ali internadas. Muito menos estamos defendendo tornar as(os) trabalhadoras(es) desempregadas(os).

Primeiramente, é necessário romper com a falácia de que desinstitucionalizar, de que fechar manicômios é sinônimo de desassistência. Infelizmente, essa falácia tem acompanhado as iniciativas de Reforma Psiquiátrica em nosso país, como forma de deslegitimá-la, sendo que não condiz em nada com o que se defende nela e por ela. Inclusive, questionamos o que se entende por assistência ao se defender a permanência de pessoas manicomializadas, asiladas.

Se existe o entendimento de que manicomializar, asilar são sinônimos de assistência, há um problema muito grande na própria concepção do que é assistência.

Como mencionado, a substituição ao manicômio se dá pela criação e o fortalecimento de toda uma rede, a RAPS – e que, a nosso ver, deve ir além do campo da RAPS, da saúde mental e das políticas de saúde, agregando outras políticas e setores.

No caso do HSVP, seu fechamento implica, pelo menos:

1) a criação de Serviços Residenciais Terapêuticos (SRTs), que não existem até o momento no DF;

2) criação de mais leitos em enfermarias de hospitais gerais; e

3) criação de mais CAPS tipo III, sobretudo CAPSad, que funcionem 24h e possuem leitos para acolhimento noturno;

4) retomada do Programa de Volta para Casa (PVC), com inserção de novos usuários nele. Podemos somar a isto a criação de outros serviços de acolhimento institucional no SUAS, bem como a inserção em algumas de suas políticas e programas (p. ex., de redistribuição de renda, de fortalecimento de vínculos, redes de apoio etc.).

O que estamos sinalizando, a partir do próprio histórico da saúde mental do DF, é que, enquanto o HSVP existir, ele será um dos principais obstáculos – senão o principal – para se pensar na criação ou fortalecimento destes outros serviços e ampliação da RAPS no DF.

Portanto, quando falamos do fechamento do HSVP estamos falando, antes de tudo, da ampliação da rede substitutiva do DF, a RAPS, com a criação de outros serviços que atendam, de fato, as necessidades de indivíduos que supostamente estão sendo atendidas no/pelo HSVP. Supostamente porque não há satisfação de necessidade, seja qual ela for, junto da negação da humanidade dos mesmos indivíduos, ao estarem segregados, asilados/manicomializados.

A própria estrutura do HSVP pode ser utilizada para isso. O complexo que é o HSVP pode, por exemplo, com as devidas transformações na sua estrutura, abrigar CAPS, SRTs.

Por que não o transformarmos em um Hospital Geral? Por exemplo, o HSVP não atende casos com necessidades assistenciais “clínicas” (por exemplo, com alguma outra condição de saúde, com as chamadas “comorbidades”). Estes casos são encaminhados para o Hospital de Base, e outros hospitais gerais.

Ora, por que não transformar o HSVP em um Hospital Geral para que possa atender pessoas com necessidades não só em saúde mental, mas também outras necessidades em saúde, só que sem manicomializá-las, asilá-las? Os próprios profissionais podem ser reaproveitados e reorganizados neste processo de transformação radical do HSVP, ao ser transformado em Hospital Geral.

Manicômios, são irreformáveis

Não estamos defendendo aqui meras reformas estruturais no HSVP, por mais que elas também sejam necessárias. Não existe CAPS, SRTs e afins com grades, cercas e muros altos etc. Instituições como o hospital psiquiátrico, o manicômio, são irreformáveis, por mais que passem por alguma reforma em suas estruturas ou condições.


"E um manicômio, mesmo o mais “reformado”, ainda é um manicômio". / Foto: Jhonatan_Cantarelle/ SES-DF

Irreformáveis, porque as reformas implicam alguma possibilidade de humanização.

E um manicômio, mesmo o mais “reformado”, ainda é um manicômio, ou seja, uma instituição desumanizante e desumanizadora; uma instituição da violência, de desumanização. Não é possível humanizar o que é desumano na sua própria natureza (social).

Estamos defendendo, portanto, uma transformação radical no HSVP a ponto de que ele deixe de ser o HSVP, ou seja, deixe de ser um hospital psiquiátrico, um manicômio. Defendemos a sua superação. Não sendo mais um hospital psiquiátrico, ele não será mais o HSVP – por mais que possam querer manter o nome. Muda-se o caráter do serviço, a sua natureza. Isso é fechar o HSVP!

:: Se não agora, quando? Pelo Fechamento do Hospital São Vicente de Paulo! ::

Particularmente, achamos bastante simbólica e importante a mudança de nome, acompanhando a mudança e fechamento do HSVP. Contudo, esse é um ponto secundário. Inclusive, sugerimos que todas as pessoas que foram asiladas-manicomializadas no HSVP tenham prioridade na escolha do nome – e na derrubada dos muros, cercas e afins. Isso também é cuidado, é terapêutico. Outra necessidade a ser considerada são políticas reparatórias a estas pessoas e suas famílias.

Por fim, também acreditamos e defendemos que, considerando o corpo de profissionais e a estrutura física do HSVP, é possível construir mais de um serviço substitutivo naquele espaço e contexto – com as mudanças substanciais na estrutura. A título ilustrativo, só o galpão do HSVP, com as devidas modificações, comportaria muito bem um CAPS ou CAPSad tipo II. Por exemplo, hoje no DF, temos CAPS funcionando em estruturas emprestadas – e obviamente insuficientes –, em “puxadinhos” de Unidades Básicas de Saúde.

É neste sentido que defendemos, mais do que nunca, o fechamento do HSVP!

:: Por que o Hospital São Vicente de Paulo ainda existe? ::

Parabenizamos a criação da Comissão de Desinstitucionalização em Saúde Mental, pela Ordem de Serviço nº 37, de 04 de março de 2024 – publicada no Diário Oficial do Distrito Federal – pela Secretaria de Saúde (SES-DF).

Que a SES-DF também se responsabilize pela criação de mais serviços substitutivos e pelo fortalecimento da RAPS, necessários para o fechamento do HSVP.

Que a Comissão de Desinstitucionalização avance no seu propósito, feche o HSVP, contribua para a ampliação e fortalecimento da RAPS, em conjunto com todo o campo da saúde mental e Movimento Antimanicomial (usuários, familiares, profissionais e militantes)!

Pelo fechamento do HSVP!

Pelo fortalecimento da RAPS no DF!

Pelo fim dos manicômios!

:: Leia outros textos desta coluna aqui ::

*Saúde Mental e Militância no Distrito Federal (SMM-DF) é um grupo vinculado ao Instituto de Psicologia da UnB, que visa potencializar a militância no campo da saúde mental.

**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.

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Edição: Flávia Quirino