A dança como lugar do encontro é parte de uma utopia possível
A Quasar Cia de Dança é uma das mais longevas companhias de dança do Centro-Oeste brasileiro. Em “Carinhosamente Juntos”, a companhia goiana apresentou ao público candango, que compareceu à mostra de dança Paralelo 16º, no dia 18 de março, no Centro Cultural da Caixa, um espetáculo que integra no palco bailarinas e bailarinos profissionais com um conjunto de bailarinas e bailarinos formado por pessoas com deficiência (PcD).
A junção desenvolvida nas coreografias busca estabelecer diálogos entre os movimentos dos bailarinos, sem as exigências que costumam balizar espetáculos de dança contemporânea. Não há, necessariamente, sincronia perfeita entre os corpos em movimento, há ritmos diferenciados, movimentos com tônus e dinâmicas distintas. Assumir isso em cena é bonito, na medida em que a ação passa a estabelecer novos critérios para o olhar exigente de quem vê e costuma julgar a dança conforme parâmetros pré-estabelecidos de qualidade.
A primeira sequência coreográfica é dissonante do que vem a seguir: os bailarinos profissionais executam uma coreografia exigente em termos de movimentação, com música dinâmica, em linha diagonal. Fiquei a me indagar sobre a razão dessa dissonância, e vislumbro duas hipóteses: uma espécie de autocrítica da tradição hegemônica da dança, com o início abrupto, em corte seco, sem desenvolvimento de relação dos intérpretes com o público; ou, o que seria menos interessante, uma demonstração prévia do corpo de bailarinos profissionais, numa espécie de prova de qualidade de alto padrão técnico de execução do elenco.
Em qualquer das hipóteses, a quebra começa com a entrada em cena do grupo de bailarinos integrado por pessoas com deficiência. Com eles e elas entram em cena outras músicas, e uma forma lúdica de composição coreográfica, que ainda que sigam padrões rigorosos de frases, assumem também uma dimensão de ludicidade em cena, de jogo entre as e os integrantes do elenco. As marcações partem de princípios dialógicos.
As e os bailarinos PcD assumem papéis centrais nas coreografias, e não apenas de coadjuvantes, como costumamos ver em trabalhos cênicos que pregam a inclusão mas secundarizam a diversidade, ao invés de incluir.
A Quasar demonstra como integrar no processo criativo pessoas com diversos níveis de motricidade, com ritmos e qualidades de movimentos diferentes, de forma harmônica.
Esse movimento no campo da dança é significativo, sobretudo, se considerarmos a história de rigidez e os filtros seletivos muito elitistas que estruturaram a dança, não apenas no Brasil.
É recente o movimento de abertura, de questionamento desses padrões, das estruturas raciais, que vem sendo confrontadas por pesquisas acadêmicas, como a da bailarina e professora Ivana Delfino, mestra e doutoranda do Programa de Artes Cênicas da Universidade de Brasília. A pesquisa “Movências nas rotas de Sankofa: pontos de partilha, danças e implicações étnico-raciais” contém, inclusive, uma autoetnografia da bailarina negra, que reflete sobre sua trajetória no balé clássico e por outras estéticas, e as marcas raciais que a afetaram em sua trajetória formativa, além de propor bases estéticas e filosóficas para outras premissas em dança.
É recente também a inclusão de novas temáticas, fenômenos cênicos de diferentes origens, manifestações tradicionais diversas, como objetos de pesquisa em programas de pós-graduação em artes cênicas, a partir da ampliação do campo de pesquisa promovido pela etnocenologia.
Ou seja, muito além dos trabalhos artísticos formatados enquanto espetáculos, apresentados em palco ou na rua, para um público espectador, atualmente uma infinidade de outras práticas artísticas e experiências estéticas são estudadas por diversos grupos de pesquisas.
“Carinhosamente Juntos” faz parte, portanto, de uma tradição relativamente recente, de desconstrução de paradigmas muito fechados de qualidade em dança, em prol de uma ressignificação do sentido do ato da dança como espaço de encontro e reflexão.
O ato de estar juntos, num contexto marcado por fortes polarizações e pela ascensão mundial da extrema direita e o amplo repertório de intolerâncias com as diferenças, com os pobres, com os migrantes, com os movimentos populares, com pessoas diferentes do padrão tido como “normal”, é um ato que emociona no palco da Quasar.
A celebração do encontro, a empatia, a brincadeira, o jogo, a dança como lugar do encontro é parte de uma utopia possível e que pode ser construída em nosso tempo histórico.
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*Rafael Villas Bôas é professor da Licenciatura em Educação do Campo da UnB e jornalista.
**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.
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Edição: Márcia Silva