Em Samambaia, desde 1997 artistas junto com a comunidade montam a Paixão do Cristo Negro.
"Pois mais fácil é passar um camelo pelo fundo de uma agulha, do que entrar um rico no reino de Deus." (Lucas 18:24-25)
Dessas datas 'santas', a Sexta-feira da Paixão me toca de forma distinta, mais que o Natal. Nascer todos nascemos, mas a forma como morremos diz muito da vida que levamos. Jesus Cristo foi embranquecido, retratado com pele alva e olhos azuis, tornaram-o exclusivamente filho de Deus, santo, fazedor de milagres… Esvaziando sua trajetória de sentido político e revolucionário.
Jesus Cristo foi um homem negro, insurgente e rebelde. Lutou contra as injustiças do império romano, desobedeceu a hipocrisia dos líderes religiosos e enquanto pessoa vinda do povo se manteve fiel e ao lado dele. Se estivesse vivo, Cristo seria apontado como comunista, esquerdista, aquele cara dos direitos humanos, defensor de bandido... se vivo estivesse, estaria Jesus sendo perseguido por pessoas conservadoras e preconceituosas. Jesus, um revolucionário! O primeiro que tocou meu coração.
Na cidade onde cresci e vivo até hoje, Samambaia, todos os anos, desde 1997 artistas, junto com a comunidade, montam a Paixão do Cristo Negro. Recordo que minhas primeiras inquietações e questionamentos sobre a forma com que a vida a figura de Cristo eram retratadas partiram da experiência como espectadora deste espetáculo.
Fazer parte da Via Sacra da minha cidade era um sonho, que este ano tenho a honra e alegria de realizar. Aproveitei a oportunidade para conhecer mais dessa corajosa ideia e conversei com algumas pessoas que estão a frente do processo. Gente que tem dedicado a vida e enfrentado inúmeros desafios para que a outra face de Cristo fosse conhecida. Conversei com Alan Mariano, Jesa Lima e Wanderson Barros que fazem parte da Direção e Comunicação do espetáculo. Compartilho com vocês essa troca de ideia inspiradora:
Qual é a história da Paixão do Cristo Negro de Samambaia? Quem foram as pessoas precursoras? Como surgiu a ideia? Quais são as origens dessa tradição na comunidade?
A Paixão do Cristo Negro, nasceu com viés politizado, dialogando com a Teologia da Libertação, de Leonardo Boff, os postulados do Teatro do Oprimido, de Augusto Boal, e a Antropologia Teatral, de Eugenio Barba. Na base está uma mocidade vinda das Pastorais da Juventude, forte braço social e político da Igreja Católica.
O maior evento cultural de Samambaia, idealizado pelo saudoso Padre Alberto Trombini da Paróquia Santa Luzia, no Distrito Federal, ganhou vida através do Grupo de Teatro TUCUM, do grupo jovem JUESP e da diretora Verônica Moreno, que abraçou essa causa e deu identidade ao projeto. Realizada desde 1997, a Paixão do Cristo Negro não busca apenas o resgate histórico da Paixão, Morte e Ressurreição de Jesus Cristo.
A intenção não é, muito menos, provar que Jesus Cristo era negro, e sim, dar a Jesus Cristo a “cara” do povo que o vive. Nesta ótica, o personagem principal pode ser vivido por negros, índios, brancos, amarelos, enfim, qualquer raça ou etnia pode vivenciar a experiência de Cristo e partilhar sua mensagem universal de caridade e respeito ao próximo.
Quais elementos culturais, religiosos e sociais estão associados à representação do Cristo Negro?
A encenação da Via Sacra faz parte da cultura brasileira, é um momento importante para a tradição cristã pois relembra o principal momento para a fé cristã, o sacrifício de Cristo para salvar a humanidade.
Os elementos sociais se tornam o diferencial da Paixão do Cristo Negro dos demais, pois traz para a milenar história elementos que fazem parte do cotidiano de quem participa e assiste, fortalecendo ainda mais o vínculo com a plateia, aproximando o diálogo e retratando, com mais intimidade e veracidade, a realidade de vida do público presente.
Uma das propostas principais da Paixão do Cristo Negro é debater o preconceito racial e provocar reflexões durante o espetáculo acerca das inúmeras questões de exclusão social, como a violência, saúde deficiente, desemprego, mostrando que o sofrimento do Cristo continua estampado no rosto dos pobres, excluídos.
Como dizia a nossa saudosa Verônica Moreno, o racismo, o preconceito, todos os tipos de violência, opressão e miséria estão ligados naturalmente à Paixão. Queremos que a comunidade se identifique com o sofrimento deste Cristo, hoje crucificado pela fome, pelo preconceito.
Como a Paixão do Cristo Negro é celebrada e encenada em Samambaia?
A Paixão do Cristo Negro é encenada tradicionalmente na Sexta-feira Santa e geralmente se apresenta um espetáculo que conta a morte e ressurreição de Cristo. Em alguns anos a encenação foi dividida em dois momentos, um que contava até a morte de Cristo, que acontecia na sexta e outro que mostrava a ressurreição de Cristo, feita no domingo de Páscoa. Por um bom tempo, a Paixão de Cristo foi encenada em uma Cidade Cenográfica, mas já teve outros formatos.
Qual é o significado simbólico do Cristo Negro para os habitantes de Samambaia?
Em 1998, a interpretação de Jesus passou a ser realizada por um ator negro e teve como objetivo permitir aos participantes e ao público uma melhor identificação com o protagonista da história.
A intenção não foi a de tentar convencer que Jesus Cristo era negro, mas sim dar ao personagem elementos que fazem com que o povo que o vive, se identifique.
Como a representação do Cristo Negro de Samambaia difere de outras representações cristãs convencionais?
Ela rompe com os estereótipos sustentados, pela Igreja Católica medieval até a atualidade e aproxima a figura de Jesus Cristo à realidade vivida pelo povo brasileiro, provocando assim uma reflexão sobre a construção do imaginário de um Cristo nesta comunidade de Samambaia. Abordando na encenação temas sociais da atualidade, entendo a dimensão de Cristo como um grande líder social e empenhado a denunciar e lutar pelos pobres e excluídos.
Como a comunidade local se envolve e participa dessa tradição?
A comunidade se envolve participando da encenação como atrizes e atores, nos diversos núcleos de produção e também como plateia. Todo o processo é feito por moradores principalmente de Samambaia, e a própria comunidade cobra pela realização da Paixão.
Quais são os desafios contemporâneos enfrentados na preservação e realização da Paixão do Cristo Negro?
Alguns desafios vão se repetindo com o passar do tempo, o principal deles é a falta de apoio e fomento financeiro ao projeto, sempre é uma grande dificuldade de conseguirmos recursos públicos, mesmo o projeto sendo um dos principais de Samambaia e fazer parte do calendário de eventos do DF.
Além disso, a Paixão de Cristo sofre com a falta de um espaço fixo para a encenação, a cada dia a especulação imobiliária nos tira espaços para a encenação. A falta de uma sede permanente para ensaios, depósito do acervo, e organização do projeto, dificultam a continuidade do projeto, gastamos muita energia para manter nossos acervos de cenário e figurino, que infelizmente não possuem um lugar fixo para ser guardado.
De que maneira essa tradição impacta a identidade cultural e religiosa da comunidade de Samambaia?
A Paixão do Cristo Negro na comunidade Samambaia têm um conjunto de significados, memória e sentimentos. Ela nasce junto com o despertar do fazer artístico da cidade, forjando e construindo a cultura de Samambaia. E evolui junto com a comunidade formando novos artistas, professores e cidadãos engajados na melhoria social.
Serviço
A Paixão do Cristo Negro
Sexta-feira (29), às 18h30
Complexo Cultural Samambaia - Cineteatro Verônica Moreno
Endereço: Quadra 301, conjunto 05, Centro Urbano, Samambaia.
A entrada é gratuita, com retirada antecipada dos ingressos que pode ser feita no local onde o espetáculo será apresentado.
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*Meimei Bastos é mestra em Culturas e Saberes, atriz, escritora, professora e produtora cultural. Coordena o ponto de cultura Caracas, véi e o Campeonato de Poesia Falada do DF e Entorno.
**Com a colaboração do grupo Paixão do Cristo Negro.
** Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.
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Edição: Flávia Quirino