Engana-se quem pensa que a história está a serviço do passado. Afinal, os acontecimentos consumados não dependem da leitura atual: a ascensão e queda do império romano, a colonização das Américas, a Copa do Mundo de 1970 e quaisquer outros episódios históricos não mudarão, independente da interpretação que fizermos deles. O que muda é a forma como nós percebemos esses acontecimentos e como eles afetam nossas decisões futuras, os valores que assumimos, as noções do que é justo ou injusto, certo ou errado, aceitável ou absurdo.
Em 2024 completam-se 60 anos do dia em que uma coalizão civil-militar achou que era aceitável depor um presidente democraticamente empossado. Depois, considerou aceitável criminalizar partidos, dissolver o Congresso, impor censura, sequestrar opositores, torturar, desaparecer e matar quem ousasse existir sem se submeter aos seus ditames. Quem resistiu e ousou enfrentar a ditadura militar pagou um alto preço. Uns com a própria vida. Outros, marcados para sempre em decorrência da tortura e perseguição sofrida.
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A memória não trará de volta os filhos desaparecidos às suas mães, não vai fazer florescer todo potencial que não pôde ser exercido pelas gerações que cresceram em uma ditadura, nem vai fazer com que a dor já sentida deixe de existir.
Rememorar não é ingenuamente querer alterar o que já está consumado.
Os criminosos da ditadura, em sua maioria, já foram vitoriosos. Já viveram suas vidas e mantiveram as mentiras que precisaram manter: receberam homenagens, constituíram patrimônio, foram vistos com orgulho. Eles nunca responderão pelos atos praticados, porém, a história da resistência popular é maior do que a história contada nos quartéis desde 1964.
Ainda assim, seus herdeiros políticos não aceitam que as Comissões da Verdade e sobre Mortos e Desaparecidos funcionem. Não aceitam que a história seja contada, que o Brasil e o mundo saibam profundamente tudo o que aconteceu. Se incomodam porque sentem vergonha? Ou porque defendem esses acontecimentos históricos de forma covarde, escondendo os fatos e consequências reais dos ideais políticos que acreditam? A mentira é uma ferramenta indispensável ao seu projeto. A verdade é um obstáculo ao seu êxito.
A história enfraquece quem, envergonhada ou declaradamente, tem saudosismo pelos anos de chumbo e no íntimo adoraria ver o país novamente subjugado à brutalidade daquele tempo. Os que flertam com autoritarismo compreendem a força da memória, por isso a combatem. Possuem a compreensão que lideranças democráticas não têm quando a tratam com ingênuo e perigoso desdém.
Rememorar o passado não é uma afronta às Forças Armadas ou ao Estado brasileiro. Pelo contrário: é a sua redenção. Se queremos desassociar do presente qualquer resquício de um passado vergonhoso, não devemos ocultar esse passado, mas retratá-lo como o que foi: uma experiência terrível, algo que não é e nem poderá ser novamente possível. Foi esse o caminho adotado pela Alemanha pós-nazismo, foi esse o caminho adotado por vizinhos latino-americanos que também viveram seus traumas ditatoriais.
O 8 de janeiro não foi apenas um episódio pontual: foi um aviso do que pode se tornar a política brasileira se não tivermos a coragem de romper de vez com esse fantasma do passado.
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Os atentados autoritários, embora não tenham sido bem-sucedidos, revelam um terreno propício para que ideais antidemocráticas floresçam, contaminem o discurso público, mobilizem milhares de pessoas e envolvam até altas autoridades militares.
Devemos nos perguntar: quantas vezes mais teremos que testemunhar o surgimento de ditaduras antes que governos democráticos percebam que sem memória não há democracia?
*Raphael Sebba é sociólogo e mestre em Arquitetura e Urbanismo
**Maninha é ex-deputada federal, médica e fundador do Movimento Geração de 68
*** Este é um artigo de opinião. A visão dos autores não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato - DF.
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Edição: Flávia Quirino