Um debate transinclusivo a respeito do direito à interrupção da gravidez
Uma polêmica já conhecida pelo ativismo transfeminista voltou à cena nos últimos dias. A deputada federal Erika Hilton (PSOL-SP), ao questionar resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM) que dificultava o acesso ao aborto nos casos previstos pela lei, defendeu esse direito conquistado desde 1940 referindo-se a todas as “pessoas que gestam”. Uma deputada de extrema direita, então, interrompeu a fala de Erika para dizer que pessoas que gestam seriam somente “mulheres biológicas”. Como se pessoas trans fôssemos hologramas.
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O caso traz de volta à memória o posicionamento lamentável de outra mulher cisgênero que se sentiu ameaçada diante do ascenso dos debates transfeministas. À época, a filósofa Djamila Ribeiro, de quem se esperava o mínimo conhecimento sobre feminismo, usou a Folha de S. Paulo para atacar o movimento trans e dizer que nós estaríamos querendo escamotear o termo “mulheres”. Isso por ter se deparado com o termo “pessoas que menstruam” no contexto da luta por dignidade menstrual.
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Djamila, assim como a deputada de extrema direita, se esqueceu que dentre nós, pessoas trans, também existem mulheres e, portanto, não faz nenhum sentido dizer que queremos substituir esse termo. E ignoram também que falar sobre as funções reprodutivas dos corpos é um debate que fazemos somente no campo da política de Saúde e da garantia de outros direitos correlatos. Em outros cenários, não faz o menor sentido para o debate público saber se uma pessoa tem vagina, pênis, se menstrua, se tem capacidade gestacional e portanto pode abortar etc.
Reduzir o debate sobre direitos reprodutivos às “mulheres” é apenas mais um dispositivo patriarcal para suprimir as identidades trans e os corpos considerados “disfuncionais”, como os de mulheres cis estéreis. O que incomoda pessoas como Djamila e a deputada que interrompeu Erika Hilton é que o local de “mulher de verdade” lhe é questionado quando se afirma que existem outros sujeitos que gestam, menstruam etc. Lhes incomoda serem chamadas de cis, porque com esse termo elas não nomeiam o diferente, pelo contrário, são nomeadas por ele.
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Contra a reprodução patriarcal da extrema-direita da deputada intromissiva ou o liberalismo universalista de Djamila, cabe afirmar, até que o patriarcado seja aniquilado: dentre as pessoas com capacidade gestacional, existem homens e pessoas que não se encaixam dentro do binarismo de gênero. E a essas pessoas deve se garantir o direito a decidirem sobre seus corpos e participarem de um debate que lhes diz respeito.
Ora, é indiscutível o protagonismo das mulheres cisgênero na luta contra a criminalização do aborto. Mulheres cis são ampla maioria dentre as pessoas que podem gestar e, consequentemente, interromper a gestação. Não é errado que se grite, escreva e lute “pelas vidas das mulheres”. Garantir o direito à participação e reconhecer a existência de outros corpos que gestam, afinal, não tem como objetivo substituir um movimento e um protagonismo históricos , mas sim incluir mais atores, de forma a superar a insuficiência que o debate hegemônico implica sobre as demais pessoas que gestam.
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As pessoas não-binárias, os homens trans e as pessoas transmasculinas que possuam capacidade gestativa também sofrem a misoginia que afeta todas as dissidências à masculinidade cisgênera dos sujeitos de poder sob o patriarcado. Também sofrem estupros, também podem gestar fetos que lhes coloquem em risco de vida ou anencéfalos.
O aborto previsto em lei também deve ser garantido a essas pessoas e também lhes diz respeito a luta pelo direito a decidir sobre o próprio corpo e abortar quando a gravidez é indesejada por qualquer motivo.
Por fim, nos cabe refletir: quando é que chamar mulheres de pessoas virou uma ofensa? Ser uma pessoa é antagônico a ser mulher?
Se falamos em pessoas com deficiências, pessoas idosas, qual então o problema em falar de pessoas com pênis, pessoas com vagina, pessoas com capacidade gestacional, pessoas que menstruam?
O problema é de quem não quer aceitar ser visto pela ótica do diferente.
É aceitar que, em vez de “normal”, “biológica”, “de verdade”, “natural”, se é somente… Cis.
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*Lucci Laporta é assistente social, militante transfeminista e dirigente do coletivo Juntas e do PSOL-DF.
** Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato - DF.
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Edição: Flávia Quirino