O julgamento de Gabriel Ferreira Mesquita, dono do bar Bambambã acusado de ter estuprado 12 mulheres, foi adiado após pedido de vista do presidente da Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), nesta terça-feira (7).
Apesar do relator do caso, o desembargador Jesuíno Rissato, ter adiantado seu voto de negar provimento ao recurso que busca reverter a absolvição do acusado, o pedido de vistas foi considerado uma vitória pelo Movimento 12 Mulheres Importam, pois indica que pode haver divergência entre os magistrados.
“A tendência, tanto dos desembargadores quanto dos ministros, era de seguir o entendimento de que só o depoimento [da vítima] não seria prova robusta”, explicou, ao Brasil de Fato DF, a advogada Manuela Paes Landim, assistente de acusação do caso.
“Mas esses crimes, em sua maioria, acontecem clandestinamente. Ninguém vai no dia seguinte ao IML [Instituto Médico Legal] se constranger. É um crime muito complexo. Então, dentro dessa tendência, eles [os ministros] pararam e disseram ‘vamos dar um foco aqui’. Porque no momento histórico agora não é não, a palavra da vítima tem sim o seu peso. O que conta é o consentimento”, avaliou a advogada.
Não é não?
Em dezembro de 2023, foi criado, através da lei 14.786/2023, o Protocolo “Não é Não”, que tem como objetivo proteger as mulheres de constrangimento e violência em casas noturnas, boates e shows. Segundo a norma, qualquer insistência, física ou verbal, sofrida pela mulher depois de manifestar a sua discordância com a interação é considerada constrangimento. O texto ainda elenca como um dos princípios da aplicação do protocolo o respeito ao relato da vítima.
“A lei não vai retroagir para prejudicar o réu, mas ela mostra que, se existe uma lei federal de ‘não é não’, porque esse entendimento foi criando corpo ao longo do tempo, e todas elas [as vítimas] falaram não, a absolvição [do réu] seria uma contradição completa”, explicou Manuela Landim. “A tendência é que a palavra da vítima tenha força, ao ponto do ‘não é não’ ter virado uma lei”, completou.
O ponto principal da defesa de Gabriel Mesquita é que a vítima não teria se expressado de maneira enfática para negar a relação anal. A argumentação foi acatada pelos desembargadores do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT), que decidiram pela invalidação do primeiro depoimento da vítima, absolvendo o réu.
Os magistrados afirmaram que a vítima de fato disse “não”, mas alegaram que ainda assim ela não “reagiu de forma séria e efetiva a fim demonstrar ao réu a sua inequívoca objeção” e que “a própria vítima disse que embora tenha pedido para o réu parar, ele teria continuado e ela não teve reação, só esperou acabar o ato”.
Na prática, é como se a Justiça estivesse admitindo que há uma “gradação” de “não” para se considerar o crime de estupro, o que não existe na lei.
O Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT) recorreu da absolvição, culminando no recurso especial que seria julgado pela 6ª Turma do STJ nesta terça (7).
Antes de ser retirado de pauta em razão do pedido de vistas do ministro Sebastião Reis, presidente do Tribunal, o relator do caso, o desembargador Rissato, se manifestou contra o provimento do recurso, repetindo os argumentos da defesa do réu. Segundo ele, o comportamento da vítima “não é compatível com a atitude de quem foi estuprado”.
“Embora a vítima tenha dito que não queria o ato sexual, não se opôs ou reagiu de modo a demonstrar sua inequívoca objeção, tendo somente dito que não teve reação e que esperou o ato acabar”, afirmou o desembargador durante a sessão.
Ele disse ainda que “apesar de a palavra da vítima ter extrema relevância nos crimes contra a dignidade sexual”, os relatos da vítima “apresentam inconsistências consideráveis, haja vista que continuou mantendo contato com o réu, tendo inclusive mandado mensagem amigáveis para ele”. “Condutas que a princípio geram dúvidas acerca da prática do delito porque não condizem com a reação hodierna de uma vítima de crime grave que em regra gera traumas emocionais profundos nas vítimas”, completou.
O que diz o Ministério Público
O MPDFT e o Ministério Público Federal (MPF) também se manifestaram durante o julgamento desta terça (7), pedindo que o recurso fosse reconhecido pelo Tribunal.
A Procuradora-Geral do MPDFT, Fabiana Barreto, relembrou que as cortes internacionais já reconhecem o paradigma do consentimento, superando o paradigma da resistência, segundo o qual a vítima teria que demonstrar uma “resistência quase heroica” para tipificar o crime de estupro.
“A inadmissão do presente recurso significa que os tribunais de todo o país estão autorizados a exigir a prova da resistência da vítima para a configuração de delitos contra a liberdade sexual, o que é rechaçado pelas convenções e tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário”, sustentou a procuradora.
Fabiana Barreto reforçou que o caso tem “grande alcance e repercussão social”, já que a decisão pode se tornar jurisprudência para o julgamento de crimes de estupro em todo o Brasil.
Já o Procurador do MPF, Paulo Queiroz, disse que o caso trata do direito à autodeterminação sexual.
“A mulher, e não importa a condição social ética da mulher, pode ser inclusive prostituta, tem o direito de dizer não. O estupro pode se consumar antes de iniciada a relação sexual, com a negativa da vítima, mas pode também se consumar durante a relação sexual. Uma relação consentida inicialmente pode se converter em estupro a depender da manifestação de interesse da mulher”, defendeu.
Segundo Queiroz, o que está em discussão neste caso é se há a necessidade de uma resistência heroica ou se basta a mulher dizer não. “Me parece que isso é uma mudança de paradigma e este STJ deve apreciar essa questão com muito cuidado e com muita sensibilidade”, sustentou.
Relembre o caso
Em 2022, Gabriel Mesquita foi condenado pela 2ª Vara Criminal de Brasília a seis anos de prisão em regime semiaberto por estupro. A defesa do acusado recorreu à sentença e, em maio de 2023, ele foi absolvido pela 3ª Turma do TJDFT, que invalidou o depoimento da vítima, alegando que este não seria uma “prova robusta”. O Ministério Público apelou ao STJ para reverter a absolvição do réu. Este recurso seria julgado nesta terça (7).
Ao todo, 12 mulheres registraram boletim de ocorrência de abuso sexual contra o ex-dono do Bambambã, tornando-o réu de cinco processos, e outras relataram, em redes sociais e grupos de apoio, abordagens com o mesmo “modus operandi”.
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Edição: Márcia Silva