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Coluna

Fotografias e desigualdade de gênero

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"Por que na época da selfie, as mulheres não se fotografam no cotidiano com seus filhos?" - Jana Regis
Fotografia faz parte das atividades domésticas e acaba sendo obrigação da mulher fazer o registro.

Recentemente tive a oportunidade de participar de um ensaio de fotos produzido por uma amiga fotógrafa que acompanha o crescimento do meu filho. Não sou adepta de ensaios de estúdio, então a proposta me chamou a atenção porque era o registro da rotina. A fotógrafa, que também é mãe, percebeu que ela não tinha registros com seu filho, então organizou sessões que pudessem registrar o cotidiano de mães e filhos. A proposta do ensaio me remeteu a uma conversa que tive com meu marido há algum tempo. Precisávamos de uma foto da família e percebi que eu não aparecia nas fotos e que tinha poucas fotos com meu filho. Em contrapartida, meu companheiro tem muitas fotos.

Quando o resultado do ensaio começou a ser divulgado, a discussão sobre as mães não terem fotos tomou minhas redes sociais e grupos de mães. Muitas mulheres vivem o mesmo drama. Por que essa situação é vivida por mulheres na época do smartphone? Por que os homens que registram seus filhos não registram suas companheiras no cotidiano? Por que na época da selfie, as mulheres não se fotografam no cotidiano com seus filhos?

Isso fez com que eu lembrasse da pesquisa do IBGE que apontou que as mulheres gastam em torno de 10 horas a mais de trabalho com cuidados e afazeres domésticos do que os homens. A mesma pesquisa diz que 92% das mulheres com mais de 14 anos se dedicam a trabalhos de cuidado ou afazeres domésticos, enquanto apenas 80% dos homens da mesma idade fazem essas atividades. Essa pesquisa se relaciona de duas formas com a fotografia: a primeira diz respeito ao fato de que fotografar o cotidiano é um trabalho, em tempo de redes sociais, e a segunda revela que a presença do homem nesse cotidiano ainda precisa ser registrada, enquanto a presença da mulher é algo comum.

A análise da fotografia enquanto trabalho no cotidiano abre um leque de discussão que deixaremos para quem pesquisa imagem. Aqui a discussão é porque as famílias recebem solicitação de fotos de momentos da rotina vindos de diferentes locais: escola, amigos, familiares distantes, médicos, terapeutas etc. Esses pedidos são carregados de uma obrigatoriedade que nos faz pensar que não seremos a mãe adequada se não tivermos fotos de nossos filhos. Então, ter a fotografia para enviar quando solicitada faz parte das nossas demandas. O pai que não tiver uma foto de um evento do dia a dia será visto como aquele que é muito trabalhador ou que não é alimentado pelos cliques da mãe.

A outra relação a ser estabelecida é sobre a presença do homem no espaço doméstico. As mães registram o pai cuidando, brincando, dividindo as tarefas do dia. E, nestes registros, buscam os melhores ângulos, a melhor iluminação, a melhor fotografia. Pessoas que não têm filhos ou relações de casal (especialmente héteros) com filhos somente dedicam essa atenção para registrar momentos especiais. O que faz o momento do pai carregar o bebê no sling ser mais especial do que o da mãe que faz isso todos os dias? A resposta é clara: a excepcionalidade. Ter homens dividindo os cuidados com a casa e com as crianças ainda é algo a ser admirado.

A má divisão das tarefas domésticas e a sobrecarga geradas nas mulheres escancara-se na pesquisa do IBGE, mas também no evento corriqueiro de fazer uma fotografia. As desculpas para isso são mascaradas com problemas de autoestima das mães logo após o bebê nascer. É verdade que os hormônios do pós-parto e amamentação, bem como a pressão social pelo corpo perfeito, nos abalam, mas serão somente eles o vilão em tempos de selfie? Quando o tempo passa e o corpo já está ajustado ou conformado, por que se continua sem foto das mães?

Minha hipótese se relaciona com trabalho e desigualdade de gênero. Fotografia faz parte das atividades domésticas e acaba sendo obrigação da mulher fazer o registro. Esse registro feito pela mulher terá muitos eventos com as crianças e adolescentes e o pai, que excepcionalmente assume atividades que deveriam ser corriqueiras e comuns na divisão de tarefas de uma família. Por isso, ao invés de apenas lamentarmos sobre o fato de não termos fotos e de nos desgastarmos em longas discussões sobre o assunto fotografia com nossos parceiros, coloquemos na mesa a divisão de tarefas da casa, dentre elas a fotografia, que faz parte da rotina, assim como lavar a louça ou levar a criança para a escola. 

As mães solos precisam passar a agir igual aos pais de final de semana. Fazer selfie de coisas comuns como chegada e saída numa loja, compra da marmita no sábado, tornando as suas ações cotidianas excepcionais, assim como ainda é inusitado e digno de registro o cuidado dos pais com os filhos, afinal, elas também são mãezonas que dão conta de tudo e ainda cuidam muito bem de seus filhos.

* Rosilene Costa é professora, doutora em Literatura, ativista do Movimento Autônomo de Mães - MAMA-DF.

**Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.

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Edição: Márcia Silva