Distrito Federal

Coluna

O paradoxo da água na tragédia do Rio Grande do Sul

Imagem de perfil do Colunistaesd
"É hora de repensar nossas prioridades e implementar mudanças legais e estruturais para garantir que, mesmo nas piores situações, a dignidade humana seja prioridade e não subordinada ao mercado hídrico" - Gustavo Mansur / Palácio Piratini
Abundância de água contaminada desaloja comunidades inteiras, enquanto há falta de água potável

A recente tragédia anunciada que assolou o Rio Grande do Sul, marcada por enchentes devastadoras, trouxe à tona um dos paradoxos mais cruéis de nossa realidade de crise socioambiental: a abundância de água contaminada isola e desaloja comunidades inteiras, sobretudo mais vulneráveis e periféricas, enquanto há falta de acesso à água potável. A inoperância, intransparência e incompetência das operadoras de saneamento se tornam ainda mais evidentes diante das tragédias humanitárias recorrentes na história recente do Brasil.

As cenas de moradores cercados por águas barrentas e insalubres, lutando para manter a dignidade em meio ao caos, são chocantes e reveladoras. Esses brasileiros, já castigados pela força das enchentes, encontram-se sem acesso a água tratada, dependendo de doações esporádicas de água mineral engarrafada para sobreviver.

Tragédias e lucros corporativos

Em meio a esse cenário de tragédia, existe, por outro lado,  um mercado que prospera. Trata-se do mercado de água mineral envasada. Em 2020, o Brasil de Fato já denunciava articulações no Congresso a serviço do lobby desse mercado. Segundo dados do Centro Universitário do Sul de Minas (UNIS-MG), este é um mercado altamente concentrado nas mãos de poucas empresas. As quatro maiores empresas do setor dominam, aproximadamente, 30% do mercado específico de águas engarrafadas no mundo, sendo elas: Nestlé 10,5%; Danone 8,2%; Coca-Cola 6,8% e PepsiCo 4%, diz o estudo.

Segundo o Sumário Mineral Brasileiro, a Agência Nacional de Mineração (ANM) publicou, em 2017, 33 novas Portarias de Lavra para água mineral. Os Investimentos foram da ordem de R$ 153 milhões contra R$ 118 milhões no ano anterior. A Coca-Cola informou investimentos expressivos em nova unidade engarrafadora da marca Crystal em Luziânia/GO.

Enquanto isso, a imagem de famílias consumindo água mineral em meio a enchentes não é novidade. Lembramos das tragédias de Mariana e Brumadinho, onde a água mineral se tornou um símbolo da sobrevivência em meio ao desastre. Agora, no Rio Grande do Sul, a história se repete. As grandes empresas lucram, aproveitando-se da vulnerabilidade alheia, enquanto o Estado falha em prover um serviço básico e essencial.

A (in)capacidade das operadoras públicas de saneamento

O paradoxo se intensifica quando consideramos que as operadoras públicas de saneamento têm todas as capacidades técnicas e recursos necessários para envasar água natural tratada e atender às populações vítimas de tragédias. No entanto, faltam políticas públicas e vontade política para transformar essa capacidade em ação prática.

Há, entretanto, exemplos de boas práticas de movimentos sociais e universidades que devem ser ressaltadas. O Projeto Vida & Água para ARIS da Universidade de Brasília (UnB), em parceria com a Empresa Pública Companhia de Saneamento Ambiental do Distrito Federal (CAESB), está efetivando a distribuição gratuita de água em pequenos reservatórios para famílias em situação de emergência sanitária, desde 2020 durante a pandemia da COVID-19. Esse projeto é um passo importante, mas precisamos avançar mais.

É crucial uma atualização da Lei Federal nº 11.445/2007, que disciplina o funcionamento das operadoras de água para fins de saneamento básico. A lei deve incluir a obrigatoriedade dessas empresas de reservarem parte dos seus recursos para a produção, envasamento e distribuição de água natural tratada para situações de emergência sanitária e humanitária. Essa medida não só mitigaria tragédias como as do Rio Grande do Sul, como também  beneficiaria populações das periferias das grandes cidades, que muitas das vezes não têm recursos nem para pagar a tarifa social.

A tragédia no Rio Grande do Sul evidencia um grave paradoxo: a presença crescente de água insalubre em contraste com a falta de água potável que poderia estar acessível. Enquanto as grandes empresas lucram, as operadoras públicas de saneamento se omitem diante do seu potencial em  recursos e expertise para fazerem a diferença no socorro às vítimas de tragédias e da miséria. É hora de repensar nossas prioridades e implementar mudanças legais e estruturais para garantir que, mesmo nas piores situações, a dignidade humana seja prioridade e não subordinada ao mercado hídrico, por meio do acesso em caráter emergencial, humanitário a um bem tão essencial quanto a água.

:: Leia outros textos desta colunista aqui ::

*No contexto de greve do corpo docente e técnico-administrativo em defesa das universidades e institutos federais cabe, para além da atual pauta principal de recomposição orçamentária e reposição remuneratória, defender  o compromisso inalienável destas instituições públicas na producão de ciências, tecnologias, filosofias e artes, com reconhecimento dos saberes originários e populares, garantindo na formação das novas gerações engajamento na busca de solução dos problemas estruturantes de uma sociedade brasileira democrática,  justa e soberana, inclusive, no direito à água potável para todas às pessoas como direito humano.

**Perci Coelho de Souza é professor do Departamento de Serviço Social da UnB e membro da coordenação do Projeto Vida & Água para ARIS; Maria Luiza Pinho Pereira é professora da Faculdade de Educação da UnB e membro da coordenação do Projeto Vida & Água para ARIS

**Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.

:: Clique aqui para receber notícias do Brasil de Fato DF no seu Whatsapp ::

Edição: Márcia Silva