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Crise na EJA: o Distrito Federal precisa voltar a ser território livre de analfabetismo

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"O analfabetismo persiste por falta de uma ação combinada com oferta de educação, busca ativa, transporte que possibilite o estudante o acesso à escola e a volta para casa" - Foto: André Amendoeira/SEEDF
GDF não investiu na educação na pandemia e nem na busca ativa pós-covid

Se há uma afirmativa que descreve a atual realidade do Distrito Federal (DF) é a frase do antropólogo, historiador, sociólogo, escritor e político Darcy Ribeiro sobre o fato de que a crise da educação não é uma crise, e sim um projeto político da elite empresarial e financeira. Vale destacar que Ribeiro foi um dos idealizadores e primeiro reitor da Universidade de Brasília (UnB), tendo o foco de sua pesquisa acadêmica na Educação e nas relações indígenas. Ele foi Ministro da Casa Civil e da Educação no governo João Goulart; e eleito a vice-governador do Rio e ex-senador.

A frase dele retrata a situação que persiste hoje na educação pública da capital do País, notadamente na Educação de Jovens e Adultos (EJA). Desde 2016, a educação pública do DF entrou numa "crise” permanente que só será resolvida se houver mudanças na filosofia de gestão pública.  A crise de hoje contrasta com o sucesso que o DF viveu 10 anos atrás, quando ganhou o selo de erradicação do analfabetismo, tornando-se, em 2014, a primeira unidade da Federação a receber o selo “Território Livre do Analfabetismo”. Após 2015, tudo foi devastação. O mais importante a destacar desse período que começou em 2016 e prossegue até hoje, é que a falta de investimentos financeiro público na política educacional tem uma relação direta com esse sucateamento proposital da educação pública, particularmente, da EJA.

Esse é um dos segmentos da educação pública mais sacrificados. Embora o projeto neoliberal e privatista de sucateamento e mercantilização da educação tenha sido derrotado na eleição para Presidente da República de 2022, ele persiste no DF pelas mãos do governo Ibaneis Rocha (MDB). A EJA é vista pelo Palácio do Buriti como um segmento que "não merece" dinheiro público. E é aí é importante recordarmos os governos federais anteriores. Afinal, não dá para não fazer uma relação direta dessa situação com os governos Michel Temer (MDB) e Jair Bolsonaro (PL). No governo Bolsonaro, por exemplo, após quatro Ministros da Educação, o que permaneceu e perpassou entre eles foi a falta de investimento em educação. Aliás, pior do que isso, houve desinvestimento de dinheiro público do setor, especificamente da EJA, que passou a ser uma das políticas educacionais que mais sofreram.

Nacionalmente, nos governos Temer e Bolsonaro, e, localmente, nos dois governos Ibaneis, foram fechadas muitas turmas e turnos. Praticamente, extinguiram a educação noturna. Não fizeram nenhum esforço para que a escola noturna se mantivesse aberta. Isso aconteceu em todo o Brasil, mas, particularmente, no DF, a rede pública de ensino enfrenta uma ausência de políticas destinadas ao fortalecimento da EJA. Não se trata apenas de falta de dinheiro, há uma série de outros desinvestimentos que forçam a extinção da EJA, como, por exemplo, outras políticas destinadas a garantir a permanência dos estudantes na escola.

Ao olharmos pela perspectiva mais geral do transporte e da própria educação, constatamos a falta de interesse em fazer a busca ativa. O governo Ibaneis não providencia um chamamento oficial e uma campanha permanente da Secretaria de Estado de Educação do DF (SEE-DF). Não se vê a busca de estudantes em casa, uma ação provocativa para eles e elas voltarem à escola. O Distrito Federal precisa voltar a ser território livre de analfabetismo.

GDF não investiu na educação na pandemia e nem na busca ativa pós-covid

A capital do País colhe, hoje, os resultados dessa política neoliberal de Estado mínimo para a classe trabalhadora e máximo para os ricos. Por falta de investimento, o analfabetismo voltou. Isso comprova que a crise na educação pública é um projeto político e econômico. Reconhecemos que a evasão de estudantes da EJA passou, entre 2020-2022, por processos difíceis, como, por exemplo, pela pandemia da covid-19. A evasão escolar desse período poderia ter sido evitada. Mas, como não houve investimento do Estado em educação remota, muitas e muitos abandonaram e não retornaram. Em várias séries de reportagens, o Sinpro-DF mostrou, com exemplos que ocorreram em todo o planeta, que era possível assegurar educação remota a todos, mas no Brasil e no DF não houve esse empenho por parte dos governos.

Deparamo-nos com todo tipo de falcatruas na condução da covid-19 e educação pública. Desde falta de Internet nas escolas até ausência de equipamentos e condições básica para oferecer ao sistema público de ensino uma educação on-line que barrasse a evasão, tudo aconteceu. A pandemia atingiu jovens, adultos, idosos, que tiveram todo tipo de dificuldades, incluindo aí a dificuldade de manuseio das tecnologias para acessar as aulas on-line. Esse foi um dos motivos de evasão. Na ocasião, os professores da EJA se empenharam para que essa educação on-line fosse materializada durante a crise sanitária.

Contudo, apesar dos esforços, a evasão foi violenta, sobretudo entre idosos. Esse problema de manuseio das tecnologias seria facilmente superado se tivesse tido a assistência do Estado nacional. A inoperância dos governos federal e local fez com que a pandemia se tornasse ponto de demarcação na vida das pessoas, em que muitas delas se afastaram da escola e, posteriormente, tiveram dificuldades ou não conseguiram voltar. Para garantir essa volta, era preciso um Estado forte, presente, com políticas públicas eficientes e eficazes de busca ativa, capaz de trazer todos de volta à escola. Isso não aconteceu no DF e nem em boa parte do País. Se o governo Bolsonaro não investiu no combate à pandemia e na vida das pessoas, imagine se ia investir na educação pública, local de onde estavam tirando dinheiro para outras finalidades.

A evasão dessa época nunca mais foi sanada. Muitos não conseguiram voltar até hoje. Recentemente, apenas, temos percebido uma perspectiva de retorno por causa do empenho pessoal e gigantesco de professores e professoras da EJA, que, por conta própria, estão nas ruas, de casa em casa, chamando-os(as) de volta à escola. Usam seu telefone pessoal, ligam para cada estudante. Há, por parte dos profissionais da educação pública, um grande esforço para que a EJA continue viva. Essa proatividade da categoria é justamente o contrário do desleixo e descaso do atual governo local com a EJA. A busca ativa do Governo do Distrito Federal (GDF) é incipiente e isso dificulta a permanência da escola aberta na educação noturna e ainda enfrentamos outros tipos de problemas, muitos dos quais já haviam sido superados no DF, como as turmas multietapas.

GDF ressuscitou a multietapas e tentou instalar o retrocesso

O governo Ibaneis fez o favor de ressuscitar as turmas multietapas, um retrocesso incontestável na educação pública, que há muito tempo o DF havia vencido. A luta dos professores da EJA e o novo governo federal tem superado essa fase. Mas, no DF, tivemos de retomar essa discussão ultrapassada para trazer um novo fim da multietapa. Buscamos trabalhar por etapa sem fazer essa mistura, ou seja, o processo de acumulação de etapas na mesma turma. Isso tem sido importante e uma demarcação fundamental para que os estudantes se sintam acolhidos na sua turma, com seus colegas, no mesmo processo educativo.

Mas tem sido um esforço imenso dos profissionais da EJA que estão envolvidos na busca ativa, indo de rua em rua, casa em casa, chamando os estudantes. Vão às feiras e às comunidades. Panfletam nas ruas, colocam carro de som, anunciam em todos os locais das cidades. Enfim, diante da inoperância do governo Ibaneis-Celina Leão, os e as profissionais da educação tomaram a iniciativa de promover ações, por conta própria, para atrair os estudantes de volta à EJA.

É preciso combinação de políticas para superar o analfabetismo

O analfabetismo persiste por falta de uma ação combinada com oferta de educação, busca ativa, transporte que possibilite o estudante o acesso à escola e a volta para casa – não existe um projeto de transporte específico para deslocamento de estudantes, que continuam usando transportes coletivos privados, que não atendem às demandas da população e não estão disponíveis nos horários mais tardios e nos bairros mais afastados, locais que estão a maior parte dos estudantes jovens, adultos e idosos.

Atualmente, após anos de luta de entidades como o Sinpro-DF, o Distrito Federal tem disponibilizado o lanche para os estudantes do noturno, inclusive, é diferenciado para que o estudante possar ir direto do trabalho para a escola. Atualmente, apesar dessa garantia, o DF tem passado por grandes perrengues de merenda, contudo, essa garantia foi um ganho que tem assegurado a chamada “jantinha” aos jovens, adultos e idosos da educação noturna.

Apesar de ser um avanço, a situação da EJA está longe de atender às necessidades porque superar o analfabetismo não é apenas ofertar serviços pontuais e sim garantir uma combinação de várias políticas públicas para manter jovens, idoso e adultos na escola. Essa combinação passa pela alimentação na escola, transporte e busca ativa, mas também por políticas de emprego e renda, construção e disponibilização de escolas nos bairros em que residem o público da EJA e investimento na formação de professores.

Ou seja, passa também pelas diretrizes da própria EJA, que, no DF, foram modificadas por meio da luta cotidiana do Sinpro-DF e outras entidades, como o GTPA-Fórum EJA e o Fórum Distrital de Educação (FDE), para um pouco melhor no sentido de que o estudante pode se matricular a qualquer tempo. Isso é um diferencial. Essa luta conquistou o direito do estudante da EJA de justificar suas ausências durante o ano porque trabalha à noite, porque tem jornada de 12 por 36 horas, porque é vigilante ou funcionários de lanchonetes, livrarias e outros estabelecimentos cujos horários comerciais.

Daí se conclui que, se, por um lado, o DF apresenta diretrizes que possibilitam aos estudantes estarem na escola, por outro lado, há a ausência crônica, principalmente por falta de interesse dos governos de plantão, de ofertar outros suportes necessários para garantir a permanência dos estudantes na escola. Tudo isso afasta as pessoas e provoca a evasão. Também revela que ainda estamos longe de fazer com que os nossos jovens, adultos e idosos e a própria educação noturna retornem com força e completa.

Há também a ausência de políticas de governo para assegurar a formação continuada de professores dirigida para o atendimento de jovens, adultos e idosos. Falta ainda fortalecer o currículo, corrigir deficiências do material didático, dentre outras combinações. Por exemplo, é preciso que o material didático seja capaz de atender, com cuidado, a esse público e trazer a realidade que ele vive. Esse ajuste é importante porque trazer o olhar da identidade, da cultura, da realidade dessas pessoas que ficaram fora da escola. Afinal, são pessoas marginalizadas na infância e na adolescência e, agora, não precisa serem marginalizadas. Ao contrário, precisam ser incluídas. E, incluir, significa olhar o currículo a partir das necessidades delas. Enfim, as nossas diretrizes são extremamente importantes, mas ainda estão muito longe de atender por completo.

Nos governos Lula e Dilma, houve um esforço para fortalecer a educação de jovens, adultos e idosos. Tivemos busca ativa intensa e conseguimos vencer o analfabetismo no Brasil. Tanto é que o Distrito Federal conseguiu erradicar o analfabetismo em 2013, durante o governo Agnelo Queiroz (PT). Isso não foi de graça. Foi resultado de uma política nacional de educação, conduzida pelo Ministério da Educação, combinada e executada por um governador comprometido com esse direito constitucional e responsável com o material político-pedagógico voltado para jovens, adultos e idosos, bem como com a formação continuada de professores.

Infelizmente, essa evolução foi estancada com o golpe de Estado de 2016, que trouxe Michel Temer e, em seguida, Jair Bolsonaro, e o projeto de crise permanente na Educação. Se olharmos a história do MEC e de seus ministros nesse período Temer-Bolsonaro confirmamos a fala de Darcy Ribeiro e constatamos que o quanto esse grupo de extrema direita desfavoreceu a educação pública do Brasil. Reduziram, radicalmente, os investimentos financeiros, extinguiram políticas importantes, condenaram as políticas do livro didático, baniram o currículo que atendia a perspectiva da diversidade e da pluralidade.

Tudo isso refletiu no compromisso de erradicação do analfabetismo. O que o DF vive hoje não é nada mais do que as consequências desses anos de políticas extremistas desses governos.

Hoje, a capital do País vive uma situação difícil: um contraste entre a cidade premiada por ter erradicado o analfabetismo e um retorno assustador de pessoas sem escolaridade na idade certa precisando da EJA para concluir seu direito à educação. A solução é apenas uma: eleger governos comprometidos e responsáveis com o investimento local e federal na educação pública, gratuita, laica, inclusiva, libertadora e de qualidade socialmente referenciada.

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*Berenice Darc, professora da rede pública de ensino do Distrito Federal, diretora da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE) e do Sinpro-DF, membro do Fórum Distrital de Educação (FDE).

**Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato - DF.

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Edição: Márcia Silva