Falta de leite e de proteínas, toneladas de arroz com caruncho e larvas, lanches com ultraprocessados, depósitos de alimentos vazios, cozinhas insalubres, e centenas de escolas sem refeitório: esse é o retrato da alimentação escolar no Distrito Federal.
O cenário foi discutido em audiência pública sobre o tema realizada na Câmara Legislativa do DF (CLDF) nesta terça-feira (28). A Secretaria de Educação (SEE-DF) trata as queixas como casos pontuais, mas parlamentares e representantes do Judiciário e da gestão escolar apontam que o problema é estrutural e cobram soluções imediatas e a longo prazo.
“Parece até lavagem”, foi a descrição dada pela deputada distrital Paula Belmonte (Cidadania) para a refeição que viu sendo ofertada aos alunos em uma escola pública do DF. Segundo a parlamentar que presidiu a audiência, ela tem visitado várias instituições de ensino nos últimos meses e há uma reclamação frequente de diminuição da quantidade de alimentação per capita – isto é, por aluno –, inclusive da proteína: “fiquei impressionada. Teve um momento em que a Secretaria de Educação só deu porco para as crianças. Foram 30 dias ou mais de porco”.
Mais de 400 mil estudantes da rede pública de ensino do DF se alimentam diariamente nas escolas. As instituições de ensino em que os alunos permanecem por mais de cinco horas ao dia, como é o caso das escolas integrais, precisam fornecer no mínimo 70% das calorias diárias da criança ou do adolescente.
Já nas escolas em que o tempo de permanência é menor do que cinco horas, a instituição é responsável por 20% das calorias. Se elas estão localizadas em áreas de vulnerabilidade social ou recebem alunos dessas áreas, a gestão escolar pode solicitar à Secretaria de Educação que sejam fornecidas refeições extras. Segundo a pasta, isso já acontece em todas as escolas da Estrutural e em algumas da Ceilândia, que recebem estudantes da Estrutural.
Os cardápios são elaborados por nutricionistas da SEE, que devem levar em conta as peculiaridades nutricionais, sazonais e regionais e dar prioridade a alimentos in natura ou minimamente processados. Os profissionais também são responsáveis por fiscalizar presencialmente a alimentação que está sendo ofertada.
No entanto, segundo o deputado distrital Gabriel Magno (PT), escolas relatam que não receberam sequer uma visita de nutricionista durante todo o ano passado. O parlamentar, que é presidente da Comissão de Educação, Saúde e Cultura (CESC) da CLDF, aponta que há atualmente um déficit de 224 nutricionistas na rede pública de ensino, enquanto vários profissionais aprovados no último concurso aguardam convocação.
“Por que não nomeia? Está esperando o que pra nomear? Segundo o relatório da gestão fiscal publicado hoje, o índice da despesa de pessoal do GDF foi de 36%, enquanto houve um recorde de arrecadação no DF. Não tem justificativa pro governo não nomear imediatamente os servidores da educação”, defendeu o deputado.
Problema estrutural
Para Gabriel Magno, o problema da alimentação escolar no DF é “estrutural”. “Nós vivemos hoje um subfinanciamento, que é uma opção política”, afirmou.
Segundo dados apresentados pelo parlamentar durante a audiência, nos três primeiros meses de 2024 foram liquidados apenas 5,4 milhões reais para a alimentação escolar. O número é considerado muito baixo, tendo em vista que no mesmo período de 2023, o valor liquidado foi de 23,5 milhões.
O deputado afirmou ainda que, no ano passado, o DF recebeu dois bilhões e meio de reais do Fundo Constitucional para a educação. “Eu pergunto para vocês: onde está o dinheiro? Dois bilhões e meio vieram do Fundo Constitucional carimbado para a educação. Sabe por que não chegou na escola? Porque foi uma opção desse governo tirar recurso próprio, porque compensou com os dois e meio bilhões a mais, e diminuiu o investimento do recurso próprio [do GDF]”, criticou.
O parlamentar também apontou problemas nos contratos da Secretaria de Educação com fornecedores e na estrutura de fiscalização. Segundo ele, o Conselho de Alimentação Escolar do DF (CAE), responsável por acompanhar e fiscalizar diretamente o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), está desestruturado e não tem acesso adequado aos dados.
“Isso é desrespeitar a gestão democrática. [O CAE] não tem acesso aos dados, não há mais transparência dos contratos. É difícil, inclusive, para essa Casa, acompanhar e fazer esse processo de fiscalização, porque vários dos processos nós não temos acesso ou o acesso é dificultado”, contou.
O promotor de justiça Anderson Pereira afirmou que a Promotoria de Defesa da Educação do DF (Proeduc) também tem notado uma “indisposição” da Secretaria em prover o CAE, o que, segundo ele, pode inclusive configurar improbidade administrativa dos gestores. “Os conselheiros do CAE-DF são os olhos e ouvidos da sociedade, avaliando e fiscalizando diretamente como está a alimentação nas escolas do DF e não podem ser tolhidos em suas atribuições legais”, defendeu.
MPDFT: “falta de gestão é o grande problema”
Desorganização da Secretaria de Educação e falta de gestão e planejamento eficaz do programa de merenda escolar no DF: para o Ministério Público (MPDFT), esses são os grandes problemas.
A merenda escolar envolve diferentes etapas: compra, transporte, armazenagem, logística, acondicionamento, preparo e serviço dos alimentos. “Nenhuma dessas operações é executada com excelência”, afirmou o promotor Anderson Pereira durante a audiência.
Segundo o representante da Proeduc, no final de 2023, o órgão recebeu a denúncia de que a Secretaria de Educação não teria investido o percentual mínimo dos recursos do PNAE na compra de itens da agricultura familiar, tendo as suas contas reprovadas pelo Conselho, o que pode redundar até no corte da verba federal para a merenda escolar do DF.
“Isso é absurdo! Como deixar sobrar dinheiro no caixa do tesouro, dinheiro que foi previsto para ser investido em merenda escolar, enquanto muitos alunos do Distrito Federal, especialmente os mais pobres, comem muitas vezes suco e biscoito ou comem carne moída estragada ou arroz carunchado, dependendo do caso”, criticou.
O promotor disse ainda que as respostas dadas pela Secretaria aos pedidos de esclarecimentos enviados pelo MPDFT são “explicações simples”, que podem até justificar o problema pontual, mas não a recorrência da falta de alimentos, de logística e de substituição dos alimentos estragados.
Em 2020, auditores do Tribunal de Contas do DF (TC-DF) visitaram 287 escolas e identificaram que 28,1% possuem cozinha pequena e inadequada, 58,6% necessitam de intervenção de engenharia na cozinha, 38% possuem depósito pequeno e inadequado, 58% possuem necessidade de intervenção de engenharia no depósito, 59,79% não possuem quantidade de equipamentos e utensílios de cozinha adequada.
Já o Censo Escolar de 2022 aponta que das 700 escolas, mais da metade (490) não possuem refeitório. “Onde os alunos comem, deputada?”, questionou o promotor.
O procurador do Ministério Público de Contas do DF Marcos Felipe Pinheiro relembrou que a fiscalização adequada das escolas é de competência da SEE e cobrou medidas mais rígidas para as empresas responsáveis pelo fornecimento da alimentação que descumprem as exigências do contrato.
“Não basta aplicação de multa. Muitas das vezes, essa empresa é reincidente, rescinda-se o contrato, adote uma medida efetiva”, defendeu.
O que disse a Secretaria?
A secretária de Educação Hélvia Paranaguá não participou da audiência pública sobre alimentação escolar desta terça (28). Ela foi representada pela subsecretária de apoio à políticas educacionais da SEE, Fernanda de Costa, que justificou a ausência da chefe da pasta afirmando que ela estava em um encontro com o presidente Lula no Ministério da Educação (MEC).
A subsecretária concordou que o fornecimento de alimentação inadequada aos alunos tem, de fato, ocorrido na rede de ensino, mas que são falhas pontuais verificadas em algumas escolas e que esses erros não representam o cenário atual por completo.
“Teve desabastecimento? Sim. No mês de março teve só carne de porco? Sim. Estava sem proteína de frango? Sim. Ninguém aqui está tapando o sol com a peneira e dizendo que tinha, não tinha mesmo”, assumiu a representante da SEE.
No entanto, a gestora garantiu que esse problema já foi superado e que a oferta das demais carnes já voltou ao normal. “Erramos e estamos aqui para melhorar. A gente honra muito nosso trabalho, que é colocar comida de qualidade no prato para nossas crianças”, declarou.
A Diretora de alimentação escolar da SEEDF, Juliene Santos, foi na mesma linha, afirmando que os problemas com a falta de proteínas já foram supridos. Ela apresentou um relatório com dados relativos à alimentação oferecida na rede de ensino. Conforme o documento, neste ano já foi destinado R$ 87,3 milhões exclusivamente para o fornecimento de alimentação aos alunos.
O relatório aponta ainda que a SEEDF realizou 646 visitas técnicas de supervisão em escolas, com campanhas instrucionais de divulgação sobre alimentação saudável, além do incentivo a projetos que promovam alimentação balanceada nas escolas públicas.
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Edição: Márcia Silva