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Artigo | Congresso Nacional utiliza orçamento para impor viés ideológico

Derrubada de veto presidencial impede orçamento para a saúde das mulheres, meninas, população LGBTQIA+ e rural

Brasil de Fato | Brasília (DF) |
"Dada a dificuldade de aprovar proposições antidireitos mais duradouras e estruturais (com exceção do Marco Temporal), a extrema direita viu no orçamento anual a sua oportunidade de reduzir direitos." - Geraldo Magela/Agência Senado

Os vetos presidenciais às emendas que violam direitos sexuais e reprodutivos de mulheres, meninas, de populações LGBTQIA+ e rurais na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) foram derrubados no Congresso Nacional. A notícia trata da sessão realizada no dia 28 de maio, quando se discutiu o Veto 1/2024 aposto ao Projeto de Lei do Congresso Nacional nº 4, de 2023. É a LDO que estipula as metas e prioridades para elaborar e executar o orçamento pelo Governo Executivo Federal do ano seguinte, no caso, 2024.

Dada a dificuldade de aprovar proposições antidireitos mais duradouras e estruturais (com exceção do Marco Temporal), a extrema direita viu no orçamento anual a sua oportunidade de reduzir direitos.

O pacote de dispositivos contidos na emenda articulada por parlamentares do Partido Liberal (PL) – primeiro, pelo líder do partido na Câmara, Altineu Côrtes (PL-RJ), e apresentada pelos herdeiros Eduardo Bolsonaro (PL-SP) e Pedro Lupion (PP-PR) –, revela os ataques diretos às minorias representativas no país e a resistência em encarar problemas políticos fundamentais, como a democratização do uso da terra, o direito à saúde, à diversidade sexual e de gênero. Em diálogo inicial na Câmara, essa emenda foi rejeitada na Comissão Mista de Planos, Orçamentos Públicos e Fiscalização (CMO), por ser considerada inconstitucional. O texto também institucionaliza a desinformação ao proibir gastos com “cirurgias em crianças e adolescentes para mudança de sexo”, procedimento nem é ofertado a essa população no país, apenas para maiores de idade.

Outros dois dispositivos vetados pela Presidência da República e agora derrubados pelo Congresso tratam de “ações tendentes a influenciar crianças e adolescentes, da creche ao ensino médio, a terem opções sexuais diferentes do sexo biológico”; e também “ações tendentes a desconstruir, diminuir ou extinguir o conceito de família tradicional, formado por pai, mãe e filhos”.

O casamento homoafetivo continua sendo um direito no Brasil, apesar de as ofensivas na Câmara tentarem suprimi-lo. Portanto, casamentos homoafetivos tradicionalmente existem e, mesmo antes da lei, famílias de diversas composições de pessoas são legítimas, não necessariamente formadas por “um pai, mãe e filhos”.

Os parlamentares também parecem desconhecer que o Brasil é um país com um dos maiores números de mulheres como chefes de família, composta apenas pela mãe e seus filhos. Essas mulheres chefes de família, em sua maioria negras, com frequência estão em situação de vulnerabilidade econômica, e também demandam políticas públicas. Também não será estratégico direcionar orçamento para elas?

As famílias rurais, em grande parte, também foram excluídas das prioridades orçamentárias pela maioria parlamentar. O veto derrubado também repudiou o dispositivo que impedia a “invasão ou ocupação de propriedades rurais privadas”, que visa estigmatizar e marginalizar pessoas indígenas, quilombolas e camponesas.

O acesso à terra é um dos recursos que viabilizam o sustento de famílias no campo e na floresta, sendo, para muitas delas, uma condição básica de sua autonomia econômica. Outra ofensiva sobre os já escassos recursos dessa população ocorreu poucos dias antes: na Câmara dos Deputados, foi aprovado projeto de lei (PL) 709/2023, que impede que "os agentes que cometam invasão de propriedade rural e urbana” sejam proibidos de receber auxílios, benefícios e de participar de outros programas do Governo Federal, bem como de assumir cargos ou funções públicos.

Agenda permanente

Como agenda permanente da extrema direita, o combate ao aborto não ficou de fora: um dos dispositivos da emenda se refere a inviabilização de recursos para a “realização de abortos, exceto nos casos autorizados em lei”.

Vale destacar que 43% das mulheres que provocaram um aborto inseguro necessitam de hospitalização, a grande maioria em unidades de saúde no SUS, segundo a Pesquisa Nacional do Aborto (2021). Além disso, há uma série de barreiras geográficas, institucionais e sociais para acesso ao procedimento nos casos legais, o que faz com que muitas pessoas acabem realizando um aborto inseguro, mesmo tendo seu direito garantido por lei.

Nesse cenário, impedir ou dificultar o uso de orçamento público em saúde para atendimento de mulheres, meninas e pessoas que gestam, que necessitam de cuidados, é um ataque direto às suas vidas. Tal emenda também gera insegurança ao trabalho de profissionais da saúde que fazem esse atendimento – a questão da atuação profissional no atendimento do aborto legal também vem sendo criminalizada por parte do Conselho Federal de Medicina (CFM), num provável efeito das incursões conservadoras do Congresso Nacional.

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Em resumo, esse que podemos chamar de “combo agro-fundamentalista” é um atentado à diversidade e à vida e foi aprovado por parlamentares da Câmara e do Senado que deveriam justamente zelar pelas populações prejudicadas. Nesse episódio descarado, o Congresso se apropria da Administração Pública para agir inconstitucionalmente.

Ao derrubar o veto que diz respeito especificamente a questões das maiorias minorizadas, o Congresso Nacional sinaliza que a prioridade dos parlamentares ao pensar no orçamento é justamente pensar as finanças públicas como ferramenta ideológica, independente do que está previsto na Constituição Federal.

Vale lembrar que esse mesmo grupo político que propôs a emenda protagonizou o chamado orçamento secreto.

O próximo passo é a promulgação das emendas e o questionamento da constitucionalidade poderá ser feito via Supremo Tribunal Federal, que provavelmente protagonizará outro episódio de tensão entre Executivo, Legislativo e Judiciário – a judicialização das questões previstas na Constituição Federal devido ao avanço da pauta ultraconservadora e antidireitos vem colocando o Judiciário, em especial o STF, em evidência desde a última legislatura, o que fragiliza o debate sobre o papel das instituições na democracia.

Dentre os dispositivos que se mantém de pé após derrubada do veto presidencial, cabe destacar os seguintes:

01.24.048 - inciso I do art. 185 - invasão ou ocupação de propriedades rurais privadas;

01.24.049 - inciso II do art. 185 - ações tendentes a influenciar crianças e adolescentes, da creche ao ensino médio, a terem opções sexuais diferentes do sexo biológico;

01.24.050 - inciso III do art. 185 - ações tendentes a desconstruir, diminuir ou extinguir o conceito de família tradicional, formado por pai, mãe e filhos;

01.24.051 - inciso IV do art. 185 - cirurgias em crianças e adolescentes para mudança de sexo; e

01.24.052 - inciso V do art. 185 - realização de abortos, exceto nos casos autorizados em lei.

* Cfemea - Centro Feminista de Estudos e Assessoria é uma organização não-governamental feminista e antirracista que atua há mais de 30 anos no campo dos direitos humanos das mulheres.

** Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato - DF.

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Edição: Márcia Silva