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Dia do Meio Ambiente

A crise climática e a lógica do lucro: o que a experiência do Movimento dos Atingidos por Barragens nos diz sobre os pós tragédias

A parcela da população que mais sofre com os impactos da crise climática é a que vive em regiões mais empobrecidas.

Brasil de Fato | Brasília (DF) |
Movimento aponta que risco de perda de direitos em momentos como o que vive o Rio Grande do Sul é grande. - Foto: Francisco Proner/Movimento dos Atingidos por Barragens

Famílias perderam tudo que construíram ao longo de anos. Falta de água potável, de comida e energia elétrica durante dias. Bairros, cidades e comunidades inteiras debaixo d’água. Vítimas. O cenário que se insurgiu no Rio Grande do Sul com as enchentes que atingem o estado desde o final de abril é desolador e mais de 2 milhões de pessoas se viram diante de um dos capítulos mais graves da crise climática no Brasil.

Atualmente, cerca de 35 mil pessoas estão vivendo em abrigos - um número que já chegou a quase 70 mil. Para além de ser a mais grave, esta é a quarta enchente que atinge o estado desde setembro de 2023 e muitas das negligências do Governo do Estado e da prefeitura de Porto Alegre já se tornaram públicas.

Os mais de 60 quilômetros de muros, diques, comportas e sistema de bombeamento da capital construídas há mais de 50 anos não suportaram a cheia do Guaíba; o governador Eduardo Leite (PSDB) flexibilizou o Código Ambiental do estado; Porto Alegre não teve nenhum investimento em prevenção a enchentes no ano de 2023.

Mas um outro alerta também precisa estar em pauta no estado, agora olhando para o momento posterior à tragédia. Segundo a experiência do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), o risco de perda de direitos em momentos como o que vive o Rio Grande do Sul é grande, diante da lógica do capital, e a crise climática pode ganhar mais uma camada de violência nesse contexto.


Porto Alegre não teve nenhum investimento em prevenção a enchentes no ano de 2023. / Foto: Francisco Proner/Movimento dos Atingidos por Barragens

Elisa Mergulhão, da coordenação nacional do MAB, pontua que os atingidos têm que ser protagonistas da reconstrução do Rio Grande do Sul. “O nosso receio é, que se aproveite do desespero das pessoas para implementação de uma lógica de diminuição do Estado ainda mais forte. E isso sirva para retirar as pessoas de onde elas viviam; transformar o provisório em permanente”, afirma.

A lógica do lucro

Em 2011, 918 pessoas morreram vítimas de um deslizamento de terra devido a fortes chuvas e enchentes na Região Serrana do Rio de Janeiro. Essas tragédias atingiram principalmente as cidades de Teresópolis, Nova Friburgo e Petrópolis, onde está o Vale do Cuiabá, localidade mais impactada à época, no distrito de Itaipava.

Roberto Oliveira, da coordenação nacional do MAB no Rio de Janeiro, conta que as famílias sobreviventes que viviam ali foram deslocadas para espaços dali distantes e a região então se tornou uma área tomada por grandes empreendimentos. “Ainda hoje, existem pessoas que não receberam nenhuma indenização. Outras foram realocadas para condomínios residenciais muito distantes da área em que construíram suas vidas”, destaca.


Para o MAB população atingida tem que ser protagonistas da reconstrução do Rio Grande do Sul. / Foto: Francisco Proner/Movimento dos Atingidos por Barragens

"O que se vê agora no Vale do Cuiabá é uma ocupação total de grandes empreendimentos, sejam imobiliários, comerciais. Hoje é uma região altamente valorizada, com chácaras, ocupada por uma classe média e alta, pessoas ricas. ‘Globais’ tem casas luxuosas ali. Isso já existia em menor proporção, porém hoje a região foi tomada por essas características de empreendimentos luxuosos”, complementa Roberto. 

Ainda no contexto do Rio de Janeiro, Roberto Oliveira aponta que algumas famílias atingidas por deslizamentos de terra também por conta de fortes chuvas em 2022 e em 2024 estão impedidas pela Defesa Civil de retornarem para suas casas, por se tratarem de áreas consideradas de risco.

Por conta disso, elas recebem um valor de R$ 1.000 reais fruto do programa Aluguel Social, mas não encontram um imóvel para alugar por este preço fora das áreas consideradas de riscos. “Existe uma alta especulação imobiliária e os preços se elevaram muito. Por isso, existem pessoas que estão voltando para as suas casas, mesmo com o risco”, explica o dirigente do MAB no RJ.


Atualmente, cerca de 35 mil pessoas estão vivendo em abrigos no RS. / Foto: Francisco Proner/Movimento dos Atingidos por Barragens

 “O que nos deixa em alerta, em casos como o do Rio Grande do Sul, é que os territórios são reorganizados segundo a perspectiva do capital, após as tragédias. O Capital enxerga no desastre uma oportunidade. Em uma situação como essa, que devasta toda a região, é muito possível que a saída do Capital seja reconstruir retirando essas pessoas desses lugares”, finaliza Roberto.

Nem mesmo os casos de Brumadinho e Mariana, que ficaram conhecidos internacionalmente, foram suficientes para constranger a lógica do lucro. Alexania Rossato, da coordenação nacional do MAB no Rio Grande do Sul, denuncia que, no caso de Mariana, a Vale sequer indenizou as pessoas atingidas. “Lá as famílias ainda hoje não têm onde morar. A Vale não construiu nada para o povo lá, não teve reassentamento”, destaca.

No caso Brumadinho, algumas famílias de vítimas conseguiram indenização em dinheiro, mas uma reportagem da Repórter Brasil de janeiro de 2024 denuncia que os valores foram cortados em até 80%, quando chegaram à segunda instância da Justiça de Minas Gerais. De 319 casos analisados, 75% tiveram decisão desfavorável às famílias atingidas.

O racismo ambiental em meio às crises


No Brasil racismo ambiental é sistemático. / Foto: Francisco Proner/Movimento dos Atingidos por Barragens

Assim como no Rio de Janeiro e em Minas Gerais, no Rio Grande do Sul, a parcela da população que mais sofre com os impactos da crise climática e, consequentemente, dos eventos extremos, é a que vive em regiões mais empobrecidas. Historicamente, no Brasil, essas populações são as não brancas – povos originários, mulheres negras, comunidades quilombolas, populações ribeirinhas -, evidenciando um racismo ambiental sistemático.

Alexania está atuando na linha de frente do Movimento para prestar solidariedade às famílias atingidas. “Não se vê, nos bairros que a gente acompanha, nenhuma mansão sendo destruída, uma casa grande, rica, sendo levada pela enchente. São casas de madeira, simples, de trabalhadores. Na beira dos rios, historicamente são os pobres que vivem”, pontua.

Ainda em meio às enchentes no RS, barragens têm dado sinais de alerta e uma delas – a Hidrelétrica 14 de Julho – já se rompeu parcialmente. Em abril de 2023, a agência de notícias Alma Preta Jornalismo conduziu um levantamento que teve a participação do MAB e que concluiu que pessoas negras são maioria em 83% dos municípios com barragens de mineração em situação de alerta no Brasil.

Alexania ressalta que, no contexto da crise climática, nenhuma barragem é segura, tornando-se um risco ainda maior, uma vez que a fiscalização dessas estruturas já é negligenciada. “Essas barragens são de uma engenharia pensada em um momento em que não se chovia 500 mm em 24 horas”, afirma.

Todos esses elementos – seja a perda de território, a expulsão, a especulação imobiliária, a proximidade de áreas de risco, os eventos extremos – são atravessados pelo racismo. E, segundo a lógica do lucro, do grande capital, esse racismo não se encerra nem mesmo após um grande desastre, e não podemos baixar a guarda nem mesmo após perdemos tudo.

*Tarcilo Santana, jornalista, integra a equipe de comunicação da CESE - Coordenadoria Ecumênica de Serviços.

Edição: Márcia Silva