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PL 1904 e o papel das mulheres evangélicas

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"Não importa em que lado do duelo ideológico estejamos, sabemos da violência de gênero e das consequências dela". - Foto: Reprodução Pixabay
Foram essas mulheres que, junto dos progressistas, disseram NÃO ao PL1904.

Ao longo dos últimos dias, temos discutido, em diferentes círculos, o PL1904, que penaliza as mulheres vítimas de estupro que fizerem aborto. O absurdo não para em culpar a vítima, pois ele se estende até penalizar os profissionais de saúde que fizerem o procedimento. Quando a situação ficou desvantajosa, a bancada evangélica decidiu colocar um artigo para punir também o estuprador. Todos já sabemos que a votação no Portal da Câmara foi uma derrota esmagadora, pois 88% dos votantes, até 17 de junho, disseram que discordavam do projeto de lei.

Sabemos que vivemos uma verdadeira guerra digital, entre progressistas e conservadores, sendo que os últimos têm saído vencedores e melhores vendedores de narrativa, isto impacta até as votações em portais das instituições, pois vence quem mobiliza mais. Então, por que neste caso, a direita conservadora evangélica não obteve êxito? Por que muitas pessoas evangélicas levantaram a voz e disseram abertamente que não concordam com essa mudança na lei?

Refletindo sobre estas questões, eu lembrei que nos anos 1990, eu participava de uma igreja onde houve o estupro de uma jovem. A moça teve a dignidade destruída por um líder daquela igreja, indo além da violação de seu corpo. A violência imperou na desconfiança e na acusação de que ela havia seduzido um homem mais velho e com poder religioso. Depois desse caso, outras tantas histórias aconteceram, sempre com a desculpa de que as jovens seduziam os homens mais velhos.  

Também recordei um de seriado que assisti, Greenleaf. A série americana é original da emissora Oprah Winfrey Network e assisti aqui no Brasil pela Netflix. A trama é sobre a história de uma família de pastores donos de uma igreja pentecostal, no estilo dessas que fazem sucesso atualmente. A série inicia com o retorno da protagonista para o enterro de sua irmã que havia se suicidado. Grace Greenleaf deixou sua família após uma tentativa de violência sexual por parte de seu tio, co-pastor da igreja de seus país. A irmã que se suicidou havia sido vítima dele, e Grace retorna para o sepultamento. A série retrata muitos momentos da vida dessa família, demonstrando os rompantes de fé e o pecado de cada personagem. Tio Mac, o abusador das sobrinhas, continuava abusando das meninas da igreja e encobrindo a violência com benesses às famílias das vítimas, numa demonstração do poder masculino e da usurpação da fé. Preciso dar spoiler: ele é desmascarado e a situação tem fim.

Como tudo isso se relaciona com o PL1904 e a votação que ele recebeu no portal da Câmara?

As igrejas evangélicas são formadas, em sua maior parte, por mulheres. São as mulheres que sustentaram o ministério de Jesus e que hoje continuam sustentando os impérios que os líderes religiosos que elegeram a bancada conservadora mantêm.

Essas mulheres, mesmo que não estejam numa posição de destaque ou de palavra final nas igrejas, sabem a opressão que todas vivem e, nos momentos que podem opinar, elas fazem isso. Foi assim nas eleições. As mulheres entenderam que para seus filhos e filhas que vivem nas periferias pudessem continuar vivos, elas precisavam mudar seu voto. E elas mudaram na solidão da urna. Muitas mulheres até hoje não podem revelar em alto e bom som em quem votaram em 2022.   

Não temos acesso aos dados de quem votou no Portal da Câmara, pois isso poderia nos dizer o gênero de quem se disse favorável, mas os resultados nos levam a duas hipóteses: a direita não conseguiu articular sua base para uma votação em massa ou as mulheres (especialmente as mães) evangélicas, usando o poder de voto secreto, disseram não à dupla violência que pode atingir meninas e mulheres. Sabendo que houve articulação, arriscamos dizer que as mulheres, inclusive as evangélicas, disseram não a esse horror em forma de projeto de lei.

O texto do PL1904 é todo amparado na Declaração de Independência dos Estados Unidos de 1776 que sustenta que os homens “são dotados pelo seu Criador de certos direitos inalienáveis, entre os quais estão a vida” (sic). A declaração e a constituição americana que a sucedeu são claramente cristãs e são de um período em que Estado e Igreja se confundiam, o que parece estar voltando a ocorrer no Brasil.

Contudo, lá e aqui, as igrejas são formadas majoritariamente por mulheres. Mulheres que sabem a violência que está dentro das casas, das igrejas e dos espaços que deveriam ser mais seguros para elas e suas filhas. Foram essas mulheres que, junto dos progressistas, disseram NÃO ao PL1904.

Não importa em que lado do duelo ideológico estejamos, sabemos da violência de gênero e das consequências dela. Podemos não assumir publicamente que o aborto é questão de saúde pública e não de cunho moral, porque o preço de assumir essa posição é alto demais para algumas de nós. Mas na intimidade do celular, mulheres de diferentes raça, classe, orientação sexual, ideologia e religião se uniram e disseram não a mais uma violência que o patriarcado impunha a nós e nossas filhas. Não retrocederemos!

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*Rosilene Costa é professora, doutora em Literatura, ativista do Movimento Autônomo de Mães - MAMA-DF.

**Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.

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Edição: Márcia Silva