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Brasília não está à venda!

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"O plano de preservação do governo de Ibaneis Rocha é, na verdade, um grande plano de negócios, destinado, sobretudo, à avidez da especulação imobiliária." - Foto: Toninho Tavares/Agência Brasília
Não restam dúvidas de que as características originais de Brasília, únicas no mundo, correm risco

​19 de junho de 2024 vai ficar para a história de Brasília como o “dia da vergonha”. Foi aprovado, na Câmara Legislativa do Distrito Federal, com 18 votos favoráveis e 6 votos contrários, o Plano de Preservação do Conjunto Urbanístico de Brasília, o PPCUB. Apesar da discordância e dos apelos dos parlamentares da oposição e das manifestações de várias entidades da sociedade civil organizada, os deputados da base governista preferiram abrir mão de sua autonomia, submetendo-se ao comando do governador, que afirmou, às vésperas da votação, que os tinha nas mãos, confirmando, mais uma vez, sua falta de apreço pela democracia, pela autonomia do Poder Legislativo e pela representação popular.

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O plano de preservação do governo de Ibaneis Rocha é, na verdade, um grande plano de negócios, destinado, sobretudo, à avidez da especulação imobiliária. Não foi à toa que entidades desse setor anunciaram na imprensa, antes do próprio Governo do DF, a apresentação da minuta da proposta legislativa à Câmara Distrital, em março deste ano. Registre-se que o Projeto de Lei Complementar do PPCUB (PLC nº 41/2024) foi protocolado na Câmara em regime de urgência, impondo uma tramitação acelerada, incompatível com a magnitude do tema e com o tamanho do documento, que inclui inúmeros anexos e 72 planilhas urbanísticas. Nos parece que a pressa foi proposital, para evitar análises aprofundadas e participação da sociedade.

Com efeito, a cada leitura da minuta do PLC e das planilhas e anexos, detectavam-se problemas gravíssimos, dentre os quais destacamos, em primeiro lugar, a ausência de um capítulo destinado ao disciplinamento de instrumentos de preservação, o que, a nosso ver, é o objetivo primordial do PPCUB.

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Ademais, para nosso espanto e ao arrepio de cláusulas da Lei Orgânica do DF, a minuta previa projetos futuros para o conjunto urbanístico tombado a serem aprovados por meio de decretos, ou seja, sem passar por uma avaliação criteriosa da Câmara Legislativa e, por conseguinte, pelo crivo da sociedade e das entidades de defesa do patrimônio. Tais “projetos futuros” são verdadeiros cheques em branco, entregues “de bandeja” para a iniciativa privada, e podem estabelecer alterações substanciais no traçado urbanístico, avançando, inclusive, sobre as áreas verdes que compõem nossa Escala Bucólica.

Apesar da exiguidade do tempo e a despeito da postura antidemocrática e pouco afeita ao diálogo do governador Ibaneis, os deputados distritais de oposição debruçaram-se sobre a proposta no sentido de contribuir para o aperfeiçoamento do PPCUB, mediante sugestões de supressão, modificação ou inclusão de dispositivos, para garantir, minimamente, a proteção de um patrimônio que não é só de Brasília e do Brasil, mas de todas as nações do planeta.

Como relator da matéria na Comissão de Educação, Saúde e Cultura, ofereci emendas criando um Capítulo contendo os instrumentos de preservação, bem como instituindo o Comitê Gestor do Conjunto Urbanístico de Brasília, de acordo com as recomendações da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco). Bem assim, atento aos riscos evidentes à integridade das quatro escalas que caracterizam e distinguem nossa Capital perante o mundo (Monumental, Residencial, Gregária e Bucólica), propus alterações em uma série de artigos. Também sugeri a supressão ou alteração de dispositivos que vilipendiam as competências do parlamento local, estabelecidas pela Lei Orgânica, e dão ao Poder Executivo superpoderes para decidir o futuro da capital, sem a prévia análise e anuência dos representantes do povo.

'Tratoraço'

Toda a disposição para contribuir e todos os apelos por mais tempo para debater e para submeter a minuta do PPCUB a uma avaliação da Unesco, previamente à votação da matéria, não foram suficientes para frear o “tratoraço” de Ibaneis.

Não é demais destacar as aberrações que surgiram, de última hora, por meio de emendas de parlamentares distritais da base do governo, como a permissão do aumento de altura dos hotéis situados na esplanada da Torre de TV, de 3 para 12 andares; a previsão de implantação de motéis e alojamentos nas quadras 900 sul e norte, em áreas originalmente destinadas a estabelecimentos de educação e saúde; a entrega de áreas verdes remanescentes à Terracap, abrindo caminho para a extinção de nossa Escala Bucólica. Diante disso, meu voto foi contrário a este plano, produzido para encher os bolsos de poucos.

Brasília foi inscrita na Lista do Patrimônio Mundial em dezembro de 1987. É um dos poucos bens do século XX e, mais excepcionalmente, a única cidade planejada do movimento moderno que figura na Lista do Patrimônio Mundial da Unesco. A experiência brasileira destaca-se, portanto, pela grandiosidade da ação. A Capital dos brasileiros representa a ousadia e o vigor de nosso povo e a vanguarda do pensamento mundial e nacional. Sua construção é o marco da afirmação definitiva da brasilidade e da superação do atraso em todos os âmbitos da vida. 

Não restam dúvidas de que as características originais de Brasília, únicas no mundo, correm risco de graves descaracterizações, autorizadas, para nosso horror e espanto, pelo Plano que deveria prever sua preservação.

Caso isso aconteça, nossa cidade provavelmente entrará na Lista do Patrimônio Mundial em Perigo e, se nada for feito, perderá o título que tanto nos orgulha e nos distingue perante o mundo, não só pela excelência do urbanismo e da arquitetura, mas também por se configurar em um ambiente urbano preparado para as mudanças climáticas, graças aos generosos espaços verdes e permeáveis que garantem o controle da temperatura local, dos ventos e das chuvas, assim como a recarga dos aquíferos.

O regime especial de proteção a que está submetido o Conjunto Urbanístico de Brasília, tal como apresentado e revisado por Lucio Costa e pela legislação local e nacional que rege a matéria, não foi esquecido pelos legisladores signatários de nossa Lei Orgânica, que o evidenciam em inúmeros dispositivos da Carta Política do Distrito Federal, em especial no art. 3º, inciso XI, que estatui, como um dos objetivos prioritários do Distrito Federal “zelar pelo conjunto urbanístico de Brasília, tombado sob a inscrição nº 532 do Livro do Tombo Histórico, respeitadas as definições e critérios constantes do Decreto nº 10.829, de 2 de outubro de 1987, e da Portaria nº 314, de 8 de outubro de 1992, do então Instituto Brasileiro do Patrimônio Cultural – IBPC, hoje Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN”. 

Bem assim, o conceito de Patrimônio Cultural da Humanidade traduz o entendimento de que sua aplicação é universal. Os sítios do Patrimônio Mundial pertencem a todos os povos do mundo, independentemente do território em que estejam localizados. Esse é o princípio basilar que deveria nortear o PPCUB.

O Parlamento local, mais do que fórum privilegiado para esse debate, tem que ser protagonista na bandeira da defesa de nosso Patrimônio Mundial. Afinal, a realização que, no dizer de Lucio Costa, foi “comovente e fundamental para o país” também está sob nossa guarda.

Assim, honrando o juramento que fiz, ao tomar posse, em defesa da Lei Orgânica, da democracia participativa e da independência e harmonia entre os poderes, votei contra a proposta do PPCUB de Ibaneis, e seguirei lutando para que não se concretize. Brasília não está à venda!

*Gabriel Magno é deputado distrital (PT-DF)

**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa  a linha do editorial  do jornal Brasil de Fato - DF.

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Edição: Márcia Silva