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Maconha: legalizar e construir políticas radicais de reparação

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"A lei de drogas que vigora atualmente (11343/2006) foi responsável por um salto alarmante no encarceramento, que tem o racismo como principal combustível." - Foto: Paulo Pinto/Agencia Brasil
Cada vitória, por menor que seja, é um passo em direção ao abolicionismo, à legalização

A descriminalização no STF é um passo importante, mas ainda há muita luta para reparar décadas de uma política de encarceramento e morte do povo negro e periférico

Na última terça-feira (25), o STF formou maioria para descriminalizar o porte de maconha para uso pessoal. Esta decisão representa um passo significativo para modificar o cenário da guerra às drogas, que, na realidade, tem servido como justificativa para matar e encarcerar pessoas negras e pobres, criminalizando seus territórios e culturas. 

Na prática, o porte de maconha deixa de ser crime, mas ainda é ilegal, de modo que a diferenciação entre usuário e traficante é circunstancial. Embora a apreensão da maconha e o encaminhamento para a delegacia para pesagem ainda ocorram, o usuário não será preso se estiver portando menos de 40 gramas de maconha, ou 6 plantas fêmeas, para consumo próprio.

Nesse caso, será conduzido à delegacia para a pesagem e assinatura do termo circunstanciado, que será encaminhado aos juízes competentes. Assim, o debate precisa avançar, principalmente no sentido de reparar o terror que há decadas assombra aqueles que o estado diz que são "a cara do crime": o povo negro e pobre pelas quebradas brasileiras.

O procedimento não criminal no juiz será encaminhado para medidas administrativas, como advertência e tratamento de saúde. No entanto, devido à falta de estrutura adequada, esses casos continuarão a ser tratados nos juizados criminais, mas sem aspectos penais. Enquanto não houver uma estrutura adequada e definida pelos órgãos competentes do executivo ou pelo legislativo, essa transição permanecerá.

É importante destacar que o fundo das políticas públicas contra as drogas ainda é direcionado ao Ministério da Justiça, que majoritariamente encaminha recursos às PMs.

Nossa luta também é para que esses recursos sejam usados para campanhas educativas, que fujam do pânico moral do Proerd, ressaltando que a questão deve sair do âmbito penal e ser tratada como uma questão de saúde pública.

A lei de drogas que vigora atualmente (11343/2006) foi responsável por um salto alarmante no encarceramento, que tem o racismo como principal combustível. O número de pessoas pretas e pardas presas aumentou 378% entre 2005 e 2019. No atual contingente, 29% dos homens foram encarcerados sob justificativa de tráfico de drogas. No caso das mulheres negras, 65% foram enquadradas neste crime.

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Junto às numerosas prisões aguardando julgamento e do acúmulo de chacinas promovidas pelas polícias, esse superlotamento do sistema prisional torna o Estado responsável pelo adoecimento e morte de milhares de pessoas negras – afinal, mesmo em situações similares, a polícia historicamente enquadra negros e brancos de formas bem diferentes e atua com diferentes protocolos nos bairros periféricos e de classe média. 

O debate sobre a implementação das câmeras nas fardas e de como se julga as incursões policiais, inclusive, vem caminhando a passos lentos, tensionado pelo desejo dos setores reacionários e sanguinários de manter as ações sem registro e com julgamentos pouco eficazes para agentes que cometem assassinatos – como no caso dos 9 jovens que perderam suas vidas em 2019 no baile da DZ7, na comunidade de Paraisópolis em São Paulo, ou da prisão forjada de Rafael Braga em junho de 2013. 

Quem é o alvo?

27% dos atuais condenados pelo porte de maconha estariam livres se, hoje, o voto do ministro Barroso vigorasse. Mas, embora o resultado do STF seja positivo, ainda é insuficiente.

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A quantidade que diferencia um usuário de um traficante (hoje em torno de 40 gramas e 6 pés da planta fêmea) também está em disputa, com grandes chances de ser definida na Câmara através dos debates no entorno da PEC 45/2023. De autoria do atual presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD/MG), essa emenda visa criminalizar o porte de qualquer quantidade e, portanto, fazer a manutenção da guerra aos pobres. 

O Brasil é permeado ostensivamente pelo discurso de combate aos bandidos, mas os verdadeiros criminosos nunca são o alvo do Estado.

Os traficantes de drogas não estão nas favelas como é construído em nosso imaginário, mas operam em larga escala, dominando áreas de transporte, agricultura e o campo político. Denúncias como a do helicóptero com 450 kg de pasta base de cocaína que parou para abastecer na fazenda da família de Aécio Neves (que segue na vida política, sendo hoje Deputado Federal), os 290 quilos de skunk apreendidos em um avião do tio da senadora Damares Alves, e os 39 quilos de cocaína encontrados no avião presidencial durante o governo de Jair Bolsonaro sempre acabam abafadas, exemplificando a impunidade e a extensão do tráfico em altos níveis. 

As investigações sobre o assassinato de Marielle Franco, que podem revelar elementos das disputas de poder que assolam o trabalhador carioca, demoram a mostrar soluções claras. Muitos desses agentes corruptos estão na vida política institucional e defendem no Congresso medidas como a privatização das cadeias como solução para os problemas do encarceramento.

Os verdadeiros bandidos, ao contrário, pouco propõem para a melhoria das escolas – e, quando o fazem, é sobre moralidades, nunca para elevar o piso salarial dos professores, por exemplo. Em 2017, o gasto com a guerra às drogas somente no Rio e São Paulo era suficiente para a construção de 462 escolas.

O que está em jogo?

Mesmo no campo progressista, muitos setores vacilam na hora de se posicionar de forma clara pela legalização da maconha. É tarefa dos movimentos sociais atuar através da educação popular e construir consensos de forma ampla sobre o que, de fato, está em jogo. A regulamentação da planta e a implementação de políticas de reparação nas comunidades atingidas pela guerra aos pobres são caminhos inevitáveis se desejamos acabar com o encarceramento em massa, combater o racismo e recuperar os danos nas periferias.

Devemos lutar para que todos os presos nesses critérios definidos pelo STF tenham acesso à justiça gratuita, defensores públicos e advogados, que sejam soltos e anistiados, considerando o princípio da nulla poena sine lege e a retroatividade da lei penal em benefício do réu, expressa no artigo 5º, inciso XL, da Constituição Federal:  

“XL - a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu;”

Precisamos de uma comissão de verdade e justiça para qualificar o impacto social desta guerra, mapeando concretamente os territórios mais afetados para que políticas concretas de reparação sejam realizadas nessas comunidades – como investimento em estrutura e saneamento, arte, cultura, educação, saúde, esportes e tantas outras urgências nas periferias.

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É necessário exigir uma regulação de toda cadeia produtiva da maconha com base na soberania nacional e agricultura familiar, para que a produção e venda não caia nos braços de empresas privadas que já se organizam a nível internacional visando novos mercados e o lucro acima da vida.

A legalização deve estar atrelada a um fundo voltado para a prática de justiça social, além de ser necessário o investimento público na pesquisa e tecnologia sobre a maconha, seus usos medicinal e recreativo, seus impactos na saúde e tantas outras investigações que a ciência pública brasileira pode se debruçar.

A favela e a esquerda comemoram juntas. Sem fogos, por enquanto, pois a batalha está longe de terminar.

Mas cada vitória, por menor que seja, é um passo em direção ao abolicionismo, à legalização e ao fim dessa guerra racista.

Com a decisão pela descriminalização, a direita certamente tentará capturar o debate e fazer capilarizar sua retórica moral, fascista, racista e de ódio aos pobres.

Acima de tudo, a criminalização impede que a planta seja tratada como deve ser: uma questão de desigualdade social, racial e de saúde pública.

Junto da construção de educação popular nos territórios para tensionar o debate entre aqueles que são mais atingidos por esta guerra, o caminho também deve ser o mesmo apontado pelo movimento feminista nas últimas semanas sobre o retrocesso no direito ao aborto: ocupando as ruas. Nossos direitos são inegociáveis!

*Samuel Vitor Gonzaga é coordenador da Rede Emancipa e do Pelas Vidas Negras DF e estudante de direito na UnB.

**Douglas de Jesus Gonçalves atua na comunicação da Rede Emancipa, é Historiador pela UFRJ e mestrando na Sociologia USP.

***Revisado por Thaiane Miranda dos Santos, graduanda em História na UnB e militante independente.

****Este é um artigo de opinião. A visão dos autores não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato - DF.

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Edição: Flávia Quirino