Políticas sociais específicas traz o debate: qual é o elemento constituinte a transgeneridade?
Nos últimos anos, vem ocorrendo um avanço moroso e tardio em políticas afirmativas voltadas à população de travestis e demais pessoas trans no Brasil, em especial no âmbito da Educação e da inserção no mercado de trabalho. As cotas trans em universidades públicas e concursos são as principais delas.
No Brasil, já são pelo menos oito universidades públicas que aplicam cotas para a graduação. O Ministério Público da União (MPU) já decidiu pela implementação das cotas em seus próximos concursos e a Defensoria Pública da União (DPU) está em processo de implementação. O movimento estudantil da Universidade de Brasília (UnB) e da Universidade Federal do Pará (UFPA) também estão avançando no tema. Até mesmo algumas empresas privadas vêm implementando políticas afirmativas contra a transfobia e pela inclusão de pessoas trans em seus quadros.
Assim como ocorreu com o movimento negro durante os debates e a aplicação das cotas raciais, momento em que se tornou necessário o estabelecimento de uma definição sobre as identidades raciais no Brasil - como preto, pardo, não-branco etc. -, o progresso em relação às cotas trans coloca um desafio semelhante ao movimento trans. Se antes era comum que se estabelecesse a autoidentificação como único critério para definição da transgeneridade, a existência de políticas sociais específicas e afirmativas para pessoas trans traz à tona a necessidade de respondermos: qual é o elemento constituinte a transgeneridade?
A resposta me parece muito simples, mas a recepção por parte de algumas pessoas da comunidade LGBTI+ é bastante difícil. A dificuldade se dá tanto pela transconveniência - o comportamento de se dizer trans somente em espaços em que isso será mais aceito -, quanto por uma postura inocente, resultante de um discurso simplista sobre autoidentificação. Falamos aqui de uma parcela da comunidade LGBTI+ que se afirma trans, mas não vive a transgeneridade e suas consequências, em especial a transfobia.
São em geral pessoas muito jovens, já inseridas nas universidades e outros locais privilegiados, que não têm contato com o movimento trans organizado ou com a realidade vivida por pessoas trans. Além do choque geracional e de classe, essas pessoas, muito próximas de estudos de gênero baseados numa perspectiva idealista e pouco propositivos no que se refere à política, compartilham a mesma experiência quanto à sua identidade de gênero: a de não quererem transicionar.
Ora, me parece óbvio que a identidade não se constitui em si mesma. A identidade é produto de uma relação dialética entre o sujeito e a sociedade em que ele se insere. Uma relação contraditória entre identidade e alteridade. A pessoa não é o que ela sente, mas sim o que ela vive. E o que vivemos é produto do que existe, não do que se pensa.
Longe de recair numa perspectiva de determinismo social à la radfem, em que a sociedade nos define e ponto final, o que quero dizer é que o determinismo individual também não conta. Ao passo que temos agência relativa sobre a socialização que vivemos - socialização patriarcal, racista e capitalista -, não conseguimos nos desvincular totalmente dela, por mais que lhe sejamos críticos. Portanto não somos mero resultado nem do que pensamos ou sentimos ser, nem do que a sociedade nos impõe. Somos produto de uma síntese que envolve esses dois fatores.
Experiência coletiva
Respondendo a pergunta anteriormente colocada: o que constitui a transgeneridade é uma experiência coletiva, semelhante a todas as pessoas trans, que necessariamente envolve a transfobia. E a transfobia, por sua vez, é resultado do processo em que uma pessoa deixa de ser lida com o mesmo gênero que foi designada. Não se trata de mera dissidência à cisnormatividade, como ocorre com uma lésbica “desfem” ou um gay afeminado (sapatonas e bichas, como o próprio movimento social reivindica, ressignificando o que antes era pejorativo). Trata-se de transicionar.
Nós não vemos travestis, mulheres trans, homens trans, transmasculinos e demais pessoas que transicionaram de gênero em locais comuns às pessoas “normais”. Se existem bichas e sapatonas nas mais variadas profissões - por mais que sofram discriminação diária -, nem isso conseguimos enquanto pessoas trans. Se a parcela LGB e cisgênero da comunidade está se casando, constituindo família, construindo espaços de convivência coletiva, essa não é a realidade de pessoas trans no Brasil. Não somos apenas homens e mulheres que não correspondem aos seus papéis, somos outra coisa. E aqui falo de “coisa”, mesmo, de desumanização das nossas existências.
A transição de gênero não é opção ou vontade, mas sim uma necessidade para que nós, pessoas trans, continuemos vivas. Viver da mesma forma como fomos designadas pelo patriarcado se torna impossível para nós porque sofremos disforia de gênero, isto é, a impossibilidade de vivermos a cisgeneridade, seja ela normativa ou dissidente. E se a transição pode ocorrer de variadas formas - lançando mão ou não de cirurgias, transição hormonal, mudança de guarda-roupa etc. -, é fato que para pessoas trans ela ocorrerá de alguma forma.
Passa a ser ofensivo que pessoas que não vivenciam nossa realidade, com toda opressão que nos é imposta, se anunciem como pessoas trans ou queiram falar por nós. Não corresponder à cisnormatividade não significa deixar de viver privilégios relativos à cisgeneridade. Assim como não reproduzir o racismo não faz com que uma pessoa branca deixe de ter privilégios sobre pessoas negras.
Cabe então dizer o óbvio: quem não transicionou de gênero ou não precisa fazê-lo não é trans. Portanto, não precisa e nem deve acessar cotas e demais políticas afirmativas voltadas à reparar os danos históricos causados pela transfobia. Entendo que, para quem se deixou levar pelo discurso individualista da mera autoidentificação, da desconstrução de identidades e demais baboseiras idealistas, essa afirmação possa ser um choque ou possa até parecer autoritária. Mas se nós, pessoas trans, não pudermos dizer o que é a transgeneridade, então voltaremos a um tempo muito recente em que pessoas cisgênero o farão com discursos que se fantasiam de científicos, mas buscam naturalizar o gênero (como se gênero não fosse intrinsecamente social) ou desvincular o indivíduo do todo social em que ele se insere.
Nada sobre nós sem nós. E mais ainda, nada para nós sem nós! Se é para nós, se é fruto da nossa luta histórica, não aceitaremos que nossas poucas conquistas sejam usadas por pessoas que não vivem nossa realidade.
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*Lucci Laporta é assistente social, militante transfeminista e dirigente do coletivo Juntas e do PSOL-DF.
** Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato - DF.
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Edição: Márcia Silva