Fé, samba e ancestralidade – esta é a tríade que sustenta Mãe Dora de Oyá em sua trajetória de resistência no Distrito Federal e Entorno. Mulher negra multifacetada, além de Ialorixá do Ilê Axé T’ojú Labá, terreiro de candomblé localizado em Cidade Ocidental (GO), Dora Barreto é educadora social, fisioterapeuta, militante, cantora e compositora.
Para a sacerdotisa, o candomblé é uma “grande escola” e um espaço de formação de identidade, de caráter e de musicalidade. Os princípios da religião afro-brasileira a acompanham desde pequenina, quando também teve os primeiros contatos com o samba, dons transmitidos pelos bisavós.
“Meu bisavô sempre disse que eu ia cuidar de muita gente. É óbvio que eu nunca imaginei que seria como ialorixá”, relatou em entrevista ao Brasil de Fato DF. Foram os bisavós benzedeiros que apresentaram à pequena Dora as rezas e o poder das folhas.
Nascida em Riachão das Neves, interior do oeste baiano, Mãe Dora chegou à Brasília na década de 70, após perder a mãe quando ainda tinha apenas 6 anos. Foi nesse momento que teve seu primeiro contato com o racismo.
“Eu devia ter oito para nove anos. Eu entendi que aquilo ali nos diferenciava do resto das crianças. Eu não entendia o que significava, mas eu sabia que era uma coisa ruim”, conta.
Apesar de ter sido um dos nomes mais apontados quando a reportagem perguntou a mulheres negras do DF quem elas gostariam de ouvir no Julho das Pretas, Mãe Dora não se considera uma referência.
“Todas as vezes que eu tô fazendo isso, eu nunca estou pensando em me transformar numa referência. Eu tô pensando que eu sou só mais um braço dessa luta, que precisa ser de todas nós”, afirma.
Confira, abaixo, a entrevista completa com Mãe Dora de Oyá para o Brasil de Fato DF:
Brasil de Fato DF – Nos conte um pouco sobre a sua origem e trajetória. Tendo em vista que a senhora é uma mulher negra multifacetada – ialorixá, sambista, militante, fisioterapeuta, educadora – como todas essas versões nasceram e coexistem?
Mãe Dora de Oyá – Eu acho que isso vem desde muito pequena, por conta dos meus bisavós. Eu perdi minha mãe muito cedo, com 6 anos, e fui criada pelos meus bisavós maternos. O meu bisavô, um moçambicano, e a minha bisavó, uma [indígena] pataxó. E aí que desde muito pequena, meu bisavô foi colocando essa coisa da música, e a música muito como esse lugar de resistência. E depois veio a luta mesmo.
Quando eu fui descobrir o racismo, que a gente não falava de racismo, eu já estava em Brasília. Eu vim para cuidar dos meus irmãos pequenos. As pessoas da vizinhança não queriam que os filhos brincassem conosco, porque nós não tínhamos mãe, meu pai trabalhava muito, então a gente ficava a criançada sozinha em casa. Diziam que não queriam que os filhos brincassem e usavam, inclusive, termos bem pejorativos, no sentido de que essas meninas vão tudo, desculpa a expressão, virar puta e esse menino vai virar marginal. Eu devia ter oito para nove anos. Eu entendi que aquilo ali nos diferenciava do resto das crianças. Eu não entendia o que significava, mas eu sabia que era uma coisa ruim.
E aí a gente começou a fazer brinquedos lúdicos dentro do quintal, para não ir pra rua. Então a gente brincava entre a gente. Fazia pipa para o meu irmão, brincava de bolinha de gude, de jogar dominó essas coisas que você vai desenvolvendo para não ter que conviver com esse tipo de coisa. Eu não sabia que era racismo, mas sabia que era uma coisa ruim.
Tudo isso foi me formatando para a mulher que eu sou hoje, de entender e de lutar contra aquilo [racismo]. Depois, eu fui crescendo e fui fazer militância política. E aí eu fui entendendo que isso era racismo. Desde sempre, então, a minha trajetória passa muito por isso, por essa coisa da infância mesmo, de saber que nós éramos diferentes no sentido de que os pais não queriam que nós brincássemos porque a gente não teria futuro. Que coisa, né? Como se as pessoas definissem o nosso o nosso caráter e o futuro.
E a sua relação com o samba também veio desse núcleo familiar?
Sim, porque o meu bisavô tocava rabeca. Todo final do dia ele chamava os netos, fazia uma grande roda e botava a gente para versar. Olha que coisa engraçada, né? Para a gente era só uma brincadeira. Ele puxava uma cantiga e botava a gente para completar essa música. Eu era pequenininha, tipo 3 anos. Samba de roda, também com 3 anos, ele tentou botar a gente pra dançar, pra sambar em volta de uma fogueira.
Mas eu nunca pensei que isso fosse alguma coisa que tivesse tanta relevância que tem hoje. Mas há muito tempo, eu entendo que isso era uma forma de resistência e e de nos mantermos unidos.
E o contato com a religiosidade e o candomblé, como foi surgindo na vida da senhora?
Isso também foi desde muito pequena. Meu bisavô e minha bisavó eram benzedeiros e foram me ensinando as rezas, o poder das folhas, como a gente tinha que utilizar, para que que servia. E meu bisavô sempre disse que eu ia cuidar de muita gente. É óbvio que eu nunca imaginei que seria como ialorixá.
E a senhora acha que consegue levar os princípios do candomblé para as outras áreas da vida, por exemplo, na atuação como educadora e sambista?
Total. Para mim, uma coisa não é dissociada da outra. O candomblé é uma grande escola, uma formação de identidade, de caráter, musical, instrumental. Então, eu não consigo ver de uma forma diferente, eu sempre penso que uma coisa está interligada a outra.
Sabe quando você pensa assim: “poxa, isso é missão”? Para mim, a música é missão, o instrumento de candomblé é missão, fazer samba é missão. Para mim, tudo isso é missão, porque leva uma mensagem. E, às vezes, nas entrelinhas está essa mensagem de resistência e de preservação da vida e de valores. Para mim, o candomblé, música e samba têm tudo a ver.
A senhora já sofreu racismo religioso? Como a senhora percebe essa situação, sendo uma mãe de santo e uma mulher negra no Distrito Federal?
É muito interessante. É evidente que você tenha esse viés do racismo muito forte. Em alguns ambientes, por exemplo quando eu boto a minha vestimenta, eu gosto muito de usar turbante, eu acho que as pessoas acham que eu sou careca, mas não tem nada a ver. Eu gosto muito de usar turbante porque é uma forma de proteger o meu ori. E às vezes eu chego em alguns ambientes e as pessoas me olham estranho e eu sinto. Olham estranho, às vezes tem um cochicho. Mas as pessoas não têm audácia de chegar para mim e falar que está feio. Mas eu sinto isso, eu vejo isso nas pessoas.
Para além disso, só teve uma vez que veio um pastor na porta da minha casa com algumas mulheres e começaram a me xingar. Claro que se eu tivesse um tacho de azeite fervendo, o negócio pegava (risos). Mas aí eu consegui botar ele para correr daqui. Eu falei para ele que não admitia, fiz um discurso daquele tamanho e ele ficou sem argumento. É isso: a gente bota para correr, solta os cachorros e vamos embora. É assim, a gente vai se defendendo.
Tendo em vista toda essa trajetória de militância, de samba e de religiosidade, a senhora se considera uma referência para as mulheres negras do DF?
Sabe que eu acho que não me considero essa referência? Eu até me assusto muito quando as pessoas falam isso. Eu só acho que eu tô fazendo a minha parte a partir desse lugar que eu que eu posso atuar. Eu tenho que fazer a minha parte. E faço isso através da cultura, do afoxé, dos Filhos de dona Maria, da composição.
Todas as vezes que eu tô fazendo isso, eu nunca estou pensando em me transformar numa referência. Eu tô pensando que eu sou só mais um braço dessa luta, que precisa ser de todas nós.
A senhora disse que em todos os âmbitos da vida trabalha como mensageira. Qual mensagem a senhora gostaria de deixar para as mulheres negras do Distrito Federal?
Eu acho que cada uma que tem o seu espaço de fala, seu espaço de força, têm que mostrar a cara, não pode ficar dentro de casa, não pode ser restrito. Cada vez que você bota a cara na rua, você está empoderando outras mulheres, está dando coragem para outras mulheres também fazerem.
Falando do Julho das Pretas, lá em 2013, quando surgiu, eu imagino que o Instituto Odara nem imaginava que iria se transformar numa lei de reivindicação de direitos. Então, nós temos essa essa ferramenta, esse instrumento, e eu acho que todas nós temos que usar.
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Edição: Flávia Quirino