Distrito Federal

Coluna

A tal da “ideologia de gênero” e o perigo às “nossas crianças”

Imagem de perfil do Colunistaesd
A ideologia de gênero hegemônica é a deles. De que meninos só devem vestir azul e serem violentos e que meninas só devem usar rosa e serem “coisas” à disposição do homem. - Foto: Vanessa Tutti
É importante destacar que a ideologia de gênero (agora sem aspas) vigente é a do próprio patriarcado

Uma das principais maneiras que o fundamentalismo religioso criou para atacar os movimentos feminista e LGBTI+ é o da defesa das “nossas crianças”. Contra as feministas, usam principalmente o discurso anticientífico de que fetos seriam pessoas e teriam direitos iguais a um ser humano desenvolvido. Contra o movimento LGBTI+, utilizam outro discurso falacioso: o de que defendemos uma suposta “ideologia de gênero”, que na prática seria uma “doutrinação” de gênero e sexualidade para tornar crianças e adolescentes em pessoas LGBTI+. É sobre essa mentira covarde que escrevo de forma mais aprofundada hoje.

É importante destacar que a ideologia de gênero (agora, sem aspas) vigente é a do próprio patriarcado. O patriarcado é um sistema social que existe há milênios, pela necessidade histórica e sócio-econômica criada pelo surgimento da propriedade privada. Isso muito antes do surgimento do capitalismo, que se consubstanciou com o patriarcado, mas é bem mais recente.

O patriarcado se reproduz e se perpetua por relações sociais que naturalizam uma suposta superioridade dos homens em relação às mulheres e designa a cada um desses grupos papéis sociais distintos. Aquilo que já sabemos: aos homens, a liderança, a disputa do espaço público, o papel de provedor; e às mulheres, a delicadeza e servidão de quem se volta para o cuidado no espaço privado: satisfazer os desejos do marido e “se virar” para atender sozinha as necessidades de crianças, idosos e pessoas com deficiência, além de manter “a casa em ordem”.

Acontece que, apesar de seu intento de naturalizar essas relações, na natureza não existem “homens” e “mulheres”. Na natureza, só existem corpos diferentes. Quem lhes dá significado é a sociedade humana - sob o patriarcado, especificamente, um significado opressor. Por isso é que o gênero é uma construção social, não um dado natural. E por arbitrária que é a significação de corpos sob o sistema de gênero, é óbvio que nem todas as pessoas conseguem reproduzir o que lhes é imposto.

Aqui encontramos uma crueldade intrínseca ao discurso patriarcal, endossado pelos fundamentalistas religiosos. Eles morrem de medo da palavra “gênero” e querem substituir tudo por “sexo”, por um discurso das diferenças biológicas que busca naturalizar uma hierarquia entre “machos” e “fêmeas”. O mesmo discurso usado pelos “red pills” e “incels”, diga-se de passagem.

Ora, mas no estado natural, não existiriam os papéis atribuídos a homens e mulheres, e nem mesmo a monogamia ou a ideia de família faria sentido. A ideia de “deuses”, inclusive o monoteísmo deles, não faria o menor sentido. Animais não têm capacidade religiosa, afinal. Então, todo o sistema de ideias deles não pode ser naturalizado. Só o que seria “naturalizável” seria a violência: o estupro e a imposição do mais forte sobre o mais fraco, por sua vez, seriam aceitáveis e talvez por isso eles não se importem com as vítimas. Mas a ideia de um deus “pai”, de família, de monogamia e de um suposto “amor” resultante disso é nada mais que uma construção social. Gênero.

A ideologia de gênero hegemônica é a deles. De que meninos só devem vestir azul e serem violentos e que meninas só devem usar rosa e serem “coisas” à disposição do homem. E há toda uma doutrinação para que isso seja introjetado na cabeça das crianças, desde que se descobre qual genitália elas terão, ainda no desenvolvimento intrauterino. E quando aquele corpo é intersexo, a imposição começa assim que possível: deve ser adaptado a um suposto binarismo inexistente até na natureza, pela arbitrariedade da família e de uma Medicina atrasada, muito antes de que a pessoa tenha capacidade de pensar sobre si mesma.

Ideologia do respeito e liberdade

Desde muito novinhas as crianças precisam entender que homens só se relacionam com mulheres e vice-versa. Daí o terror patriarcal contra casais formados por pessoas do mesmo gênero andando em público ou retratadas na mídia; contra pessoas transgênero; contra a ideia de que mulheres e meninas podem sonhar e fazer o que elas quiserem e que homens e meninos não podem demonstrar emoções de maneira genuína.

Daí, também, a coerção violenta aos que não correspondam a esses padrões. Como se a coerção pudesse mudar aquilo que as crianças são ou virão a ser em algum momento. Só o que a violência faz é que sejam pessoas traumatizadas. A ideia de que se tornariam LGBTI+ somente por saberem que essas pessoas existem também não faz o menor sentido. As pessoas são ou virão a ser o que tiverem que ser, independente do que se quer que elas sejam. 

Quem defende o gênero são eles! Nós, que estudamos o gênero, sabemos que ele nem fazia sentido em sociedades tradicionais antes da colonização europeia. Sim, as ideias de “homens” e “mulheres” e de que o corpo com pênis possui superioridade sobre o corpo com vagina não existiam entre os povos que não desenvolveram a propriedade privada e nem classes sociais como base social. A pesquisadora nigeriana Oyèrónkẹ́ Oyěwùmí nos mostra que na sociedade iorubá tradicional, por exemplo, a diferença entre os corpos com pênis e com vagina não gera superioridade de uns sobre os outros.

De nossa parte, que lutamos por igualdade, as crianças - sem essa ideia de “nossas”, como se fossem algum tipo de posse - devem ter garantidos os seus direitos de estudar, de brincar e de ter as condições de se desenvolver de forma livre e saudável. Nossa ideologia é de respeito e de liberdade, independente de como essas crianças se vistam, de quais brincadeiras gostem mais ou peçam para ser chamadas. O respeito a elas deve existir independente de qualquer característica que possuam ou manifestem.

A existência de crianças e adolescentes transgênero, por exemplo, é reconhecida há décadas pela Organização Mundial de Saúde (OMS) e, desde 2019, não é considerada uma doença mental, mas uma condição de saúde específica (tal qual a gravidez, por exemplo, que ninguém diria ser uma doença). E não me venham com essa de que “sexualizamos” crianças.

A transgeneridade não é um tipo de orientação sexual, não é a mesma coisa de ser gay, lésbica, heterossexual etc., não ter a ver com desejo sexual. É identidade de gênero, é autopercepção de si a partir desse mundo e a necessidade de transicionar para viver quem realmente é. E transição de gênero, por sua vez, não é sinônimo e nem depende de transição hormonal ou cirurgias de redesignação - essas, se forem da vontade da pessoa, não acontecem na infância. Nenhuma ação irreversível relativa à transição de gênero ocorre nos corpos de crianças. 

Quem “sexualiza” crianças, aí sim, é quem se preocupa com o qual a orientação sexual elas terão quando estiverem desenvolvidas o suficiente para começarem a ter desejo sexual. Quem impõe que eles devam, desde muito cedo, que venham a ser o que o patriarcado espera que sejam.

Crianças trans devem ser amadas e acolhidas como quaisquer outras. A nível de Estado, sua diferença deve apenas significar que devem ser protegidas com políticas sociais específicas e que tanto elas como suas famílias devem ter o direito de acessar serviços de saúde especializados - não para “tratar” alguma coisa, mas sim para que profissionais especializados possam acolhê-las em suas necessidades específicas e fortalecê-las diante de uma sociedade transfóbica.

Quem doutrina, portanto, são os adultos que tentam tolher e moldar, reproduzindo a ideologia de um sistema baseado no gênero, ou seja, o patriarcado. E se eles discordam da ciência e desconsideram a palavra de quem é diferente, que estudem o suficiente para debater com a OMS - que nem de longe superou o patriarcado, mas pelo menos vem progredindo. E que sejam punidos por suas ações machistas e LGBTIfóbicas contra crianças, adolescentes e adultos que de alguma forma sejam dissidentes ao patriarcado.

:: Leia outros textos desta colunista ::

*Lucci Laporta é assistente social, militante transfeminista e dirigente do coletivo Juntas e do PSOL-DF.

** Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato - DF.

:: Clique aqui para receber notícias do Brasil de Fato DF no seu Whatsapp ::

Edição: Rafaela Ferreira