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Revolução do Amor

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"Comemorar a existência de mulheres negras é zelar por suas vidas e, por mais que o meu mundo, quando comparado ao das minhas avós, já tenha sido indiscutivelmente melhorado, é pouco. Eu quero muito, muito, mas muito mais." - Agência Brasil
Entendo que a única revolução possível para mulheres negras, é a Revolução do Amor

Quando estava escolhendo um tema para este texto, resolvi escrever sobre o “Julho das Pretas”. De acordo com o site da Fundação Palmares, no dia 25 de julho foi comemorado o Dia Internacional da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha e no mês de Julho, alguns eventos já são conhecidíssimos na capital federal, inclusive o Festival Latinidades: já na sua 17ª edição.

Pois bem, como celebrar a mulher negra sem pensar uma revolução?

Porque metade da vida eu passei sabendo que se me perguntavam com frequência se eu era babá da minha prima ou se eu trabalhava no restaurante que eu era cliente, é porque sou uma mulher negra, logo, muito menos pessoa que outras pessoas. A outra metade da vida eu passei aprendendo que sou descendente de povos muito sábios e ricos, grandes civilizações que foram destruídas e escravizadas. 

E é importante aqui pontuar: nunca fomos escravas, porque somos, em primeiro lugar, seres humanos. No entanto, a história nos conta que fomos sim escravizadas, não porque éramos menores, animalescas ou sem alma - como até hoje tem gente dizendo por aí sem nenhum receio de punição - mas porque uma parte do mundo olhou pra sua própria pele, depois para outras peles e disse: Aposta quanto que a gente consegue matar, roubar, estuprar e escravizar o resto do mundo inteiro?

Quando digo que sou revolucionária, muita gente acha que quero quebrar vidraças e botar fogo em ônibus o que, embora eu absolutamente não julgue quem quer, se estourar a revolução hoje e me chamarem pra rua eu vou faltar. Real, oficial, não vou sair da minha casinha pra tomar chumbo na rua. Eu sou uma mulher negra, eu tomo chumbo na rua todos os dias da minha vida! Chega!

Quando se pensa em revolução, o próximo pensamento são guerras intermináveis e, ao menos o meu próximo pensamento é que todos os homens que eu conheço são militares na reserva. Quem seriam chamados primeiro pra ser bucha de canhão numa guerra contra a classe trabalhadora? Nessa hora passa um filme na minha cabeça: minha tia no portão de casa no auge do seu quase 1,5m nocauteando cada pessoa que tentasse obrigar meu primo, seu único filho, a lutar em guerra de branco. Sabe aquela imagem famosa da internet? No filme da minha cabeça, o final é feliz. 


"Em uma guerra, quem sairiam feridas seriam mais uma vez as mulheres negras" / Foto: Reprodução Internet

No entanto, na vida real, as chances de um “viveram felizes para sempre” precisa primeiro passar do “viveram”.

Assim, se acredito numa revolução do amor, é por entender que em uma guerra, quem sairiam feridas seriam mais uma vez as mulheres negras: as que sobrassem vivas, enterrando seus homens negros de ambos os lados. 

Olhando pros astros, pensando uma perspectiva astrológica, em 2024 Plutão entrou em Aquário para só sair em 2044. E, segundo matéria do jornal O Globo de janeiro de 2024, “o planeta mais transformador entra no signo mais revolucionário e tecnológico do zodíaco”. Confesso estar bastante empolgada com o que vem por aí.

A última vez que Plutão entrou em Aquário, em 1797, o mundo presenciou a Revolução Francesa (1789-1799) que serviu de estopim para a Revolução do Haiti (1791-1804): primeiro país a abolir a escravidão negra nos litorais do Oceano Atlântico.

A Revolução no Haiti e a inspiração pras lutas

Se eu puder resumir essa história - que a maioria absoluta de quem me lê não tem ideia de para que lado vai - eu vou direto ao ponto: A colônia de São Domingos era propriedade da França, que convenceu geral a apoiar a revolução francesa sob o lema de “Igualdade, Fraternidade e Liberdade”. E a minha pergunta, para você que me lê, é a seguinte: Como ser escravizada, nativa de um país preto que foi invadido, e não apoiar a igualdade, a fraternidade e a liberdade? Me diz, como?

Mas não demorou os pretos sacaram que estavam morrendo numa guerra que não tinha absolutamente nenhuma intenção de acabar com a escravidão. Imagina você - que acreditou nos franceses, que convenceu seus amigos a acreditarem também e ainda lutarem por eles - de repente entender que quando tudo isso acabar eles, os brancos, vão ficar livres dos problemas deles e você não. 

Os colonos de São Domingos mataram todos os brancos e, com o tempo, todos os mestiços também, inclusive mulheres e crianças. Mudaram seu nome para Haiti e inspiraram as revoluções pelo fim da escravidão negra no mundo. 

Se a gente olhar para o Haiti hoje, é fácil entender porque ele foi tão maltratado. Um país preto que ousou lutar, resistir e ainda vencer, não seria poupado. Depois dá um google aí: “Revolta de São Domingos”, “Revolução do Haiti” ou “Independência do Haiti” para conhecer melhor essa história, vale a pena. Um salve pro Haiti!

De volta a 2024, a gente já está misturado demais para achar que faz sentido sair na rua matando branco. Se ainda for querer matar mestiço, que nem no Haiti, aí mesmo que não sobra ninguém. Nós somos brasileiras, a gente não faz guerra com os outros! É o país do samba, do futebol, da capoeira e das lindas mulheres (contém ironia). O país que, segundo matéria do Brasil de Fato de janeiro de 2022, “segue há 13 anos no topo da lista, como o país que mais mata pessoas transexuais no mundo”.

O Brasil é o país que, de acordo com a matéria de novembro de 2017 do G1, “mata um jovem negro a cada 23 minutos”. Quantas pessoas você já ouviu falar que foram presas e continuaram presas por racismo? A gente não faz guerra com os de fora porque estamos ocupadas demais lutando nossas batalhas internas e diárias. 

Pois bem, de volta a 2024, eu entendo que a única revolução possível para mulheres negras, é a Revolução do Amor. E se é a única possível para nós que somos a base da pirâmide social brasileira, então é a única revolução possível. Ponto.

E como assim, Revolução do Amor? 

Bom, eu acredito em usar o material que o universo dá e o nosso universo brasileiro tem Jesus em milhões de lares. E Jesus foi, indiscutivelmente, um grande revolucionário do amor. Assim, se a Bíblia fala em dízimos e Jesus mandou o jovem rico distribuir seus bens aos pobres (Mateus 19:16-21), para os cristãos eu penso: Está na constituição de 1888 que igrejas não pagam impostos. Já no início do ano, segundo o G1, aumentaram ainda mais as regalias, então é justo que os cristãos separem os 10% de seu salário e, ao invés de doar para as igrejas, distribuam na rua. 

Ou, que tal olhar as crias de uma mãe solo para que ela tenha um tempo pra si? É um dízimo do tempo, serve também. Com dinheiro você dá gorjeta gorda, compra pano de prato, balinha, bota dinheiro no chapéu de artista de rua, qualquer coisa. Calcula seus 10%, saca em notas de R$10, coloca em um envelope e distribui do seu jeito. Quem vai ter coragem de dizer que Jesus ia achar ruim?

Em outra frente, eu acredito na união da classe trabalhadora. Acredito no Movimento VAT que luta pelo fim da escala 6x1. Eu trabalhei 1,5 anos com uma folga por semana, eu tinha 22 anos e quase parecia mais velha do que hoje, com 39. 

Eu acredito em greve geral, do tipo O Dia em que a Terra Parou, do grande profeta do apocalipse, Raul Seixas: “o empregado não saiu pro seu trabalho pois sabia que o patrão também não estava lá”. 

Já pensou se a gente simplesmente parasse de ir pro trabalho uma vez por semana?

Ou você acredita nesse papo de que “o sistema vai quebrar” só porque você vai trabalhar um pouquinho menos?

Rita Von Hunty tem um vídeo bem rapidinho chamado “A idade média é aqui”, em que ela fala sobre como camponeses medievais não trabalhavam mais do que 150 dias por ano e nós, no Brasil de 2014, com todos os avanços tecnológicos, trabalhamos em média 213 dias. Segundo a drag queen, estamos reencenando a revolução industrial e isso só pode ser bom para quem é herdeiro.

Em uma terceira frente, talvez a que mais me contemple, acredito na arte de rua. Em 2011 eu estava hospedada em Copacabana quando me deparei com a Parada LGBT+ acontecendo ali, na minha frente, e me apaixonei pelas cores, pela música, pela arte correndo solta na rua. 

Eu acredito em carnaval fora de época numa semana de greve geral. Tipo o chileno que conheci em Búzios, um marceneiro talentosíssimo que cobrava barato por não ter prazo de entrega: “se fizer sol, eu vou pra praia e seu armário vai ter que esperar!”. Um salve pro Bryan, que partiu deste mundo cedo demais!

Por fim, pensei: como escrever sobre um mês para comemorar a vida das mulheres negras sem pensar em tudo isso?

Comemorar a existência de mulheres negras é zelar por suas vidas e, por mais que o meu mundo, quando comparado ao das minhas avós, já tenha sido indiscutivelmente melhorado, é pouco. Eu quero muito, muito, mas muito mais. 

Por isso entendo que, em pleno século XXI, Jesus é o soro antiofídico do veneno que o próprio cristianismo injetou na sociedade para dar suporte ao capitalismo.

Acredito que a união entre cristãos, trabalhadores e artistas exercendo escuta e empatia em busca de uma sociedade horizontal, é a melhor chance de presenciarmos uma revolução em vida sem ter que passar por uma redução fulminante da população mundial.

Por isso sempre digo acreditar em uma Revolução do Amor.

Por isso repito que é preciso resgatar os cristãos para voltar seu olhar para Jesus, é preciso resgatar os trabalhadores para se entenderem como parte da mesma classe social e é preciso respeitar a arte e o artista como disseminador de todas as histórias contadas!

Digo tudo isso, respiro fundo e penso: estamos todas fodidas. E no entanto, vou pacientemente regando minha fé na humanidade que, mesmo que seca e doente, deve permanecer viva.

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* Naiara Lira é atriz, cantora e produtora cultural na capital.

** Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato - DF.

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Edição: Flávia Quirino