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Juventudes periféricas do DF: futuro ancestral por uma abolição de fato

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"As juventudes periféricas são sobreviventes de constantes violações de direitos humanos, negadas em suas humanidades diariamente" - Foto Mídia Ninja
A meritocracia é um mito que subalterniza, objetifica as pessoas negras

A escravização é um dos maiores crimes da humanidade e, certamente, o maior crime da sociedade brasileira, que, infelizmente, não podemos tratar como fenômeno acabado. Como  o último país a abolir, o Brasil moldou a abolição como uma estratégia política de extermínio da população negra. No entanto, a capacidade de tecer a vida, ressignificar espaços e resistir à opressão é uma característica intrínseca à força intelectual e cultural da negritude.

Assim surgem as favelas e periferias, nas margens dos centros urbanos, onde os habitantes são geograficamente marginalizados e criminalizados por ocupar terras consideradas não nobres. São culpabilizados por descender de pessoas traficadas e escravizadas, numa inversão de valores que usurpa direitos e perpetua uma falsa e hipócrita justiça.

Ser jovem periférico é ser rotulado como parte do grupo dos 3Ps - pobre, periférico, preto. Porém, é importante destacar que a pobreza não é falta de trabalho, investimento ou esforço das gerações anteriores. Se não houve herança, houve roubo: roubo de tempo, de força de trabalho, trabalho escravo e/ou análogo à escravidão. A meritocracia é um mito que subalterniza, objetifica as pessoas negras, fundamentada pela condição histórica de privilégios, ou branquitude.

As juventudes periféricas são sobreviventes de constantes violações de direitos humanos, negadas em suas humanidades diariamente. Conhecem na pele as violências marcadas pelo CEP como alvo na mira da necropolítica, seja pelo processo de gentrificação, pelas operações policiais violentas ou pela ausência de serviços públicos adequados.

Esses jovens são o elo mais próximo de nosso passado, presentes no hoje e já moldando o amanhã. Portanto, investir em sua dignidade e qualidade de vida não é apenas sensato, mas imprescindível. Diante disso, urge a retomada de direitos e o pagamento dessa dívida histórica através da aplicação de políticas públicas que impeçam escolhas racistas, machistas e misóginas.

Em 2024, o governo federal lançou o plano "Juventude Negra Viva". Viva! Essa iniciativa marca uma retomada na humanização das juventudes periféricas. Reconhecendo que a maior concentração de pessoas negras se encontra nas periferias das cidades, o plano visa impactar as dinâmicas sociais nesses territórios.

O plano é composto por 250 ações pactuadas entre 18 Ministérios e sua elaboração foi coordenada pelo Ministério da Igualdade Racial e a Secretaria Geral da Presidência da República. O objetivo principal é reduzir as vulnerabilidades que afetam a juventude negra brasileira e combater a violência enraizada no racismo estrutural.

Lançado em 21 de março de 2024, o plano conta com um investimento previsto de mais de R$ 600 milhões, e representa uma importante retomada das políticas para a juventude, que sofreram desmontes após o impeachment da Presidenta Dilma Rousseff. Avanços significativos, como o Estatuto da Juventude (Lei 12.852/2013), ganharam pouca visibilidade nos governos desde 2016.

Essa conquista do movimento juvenil determina os direitos dos jovens que devem ser garantidos e promovidos pelo Estado brasileiro, independentemente de quem esteja no poder. O Brasil se destaca na formulação de leis que preveem o acesso a direitos, mas a efetivação dessas leis esbarra nos interesses de grupos privilegiados.

Portanto, celebrar e reconhecer a importância do plano elaborado de forma transversal, considerando a interseccionalidade das opressões, é crucial. Planejar e investir na vida das juventudes, nessa perspectiva, simboliza fomentar novas perspectivas oportunizando existências que até aqui resistem bravamente.

Retratos sociais da juventude

No panorama do Distrito Federal, segundo a Pesquisa Distrital por Amostra de Domicílios (PDAD) 2021, a população jovem, de 15 a 29 anos, totaliza 725.916 pessoas.. Em 2022, o Instituto de Pesquisa e Estatística do Distrito Federal (IPEDF) realizou um estudo sociodemográfico dessa população, denominado "Retratos Sociais DF 2021 - Juventudes".

O estudo considerou diversos eixos, como renda, raça/cor, gênero e orientação sexual, arranjo familiar, educação e trabalho. Os resultados revelam que em 2021, a juventude do DF representava 24,1% da população total (3.010.881 habitantes). Observou-se que 17,3% dos jovens pertenciam às classes D e E, com renda domiciliar de até R$ 1.870,50, e apenas 12,6% frequentavam o ensino superior entre os que estudavam na rede formal.

Na classe A, com renda domiciliar de 24.878,22  o percentual sobe para 54,2%. Cerca de 40% dos jovens frequentavam escola ou faculdade em 2021. Nas classes D e E, havia menor proporção de jovens frequentando instituições de ensino formal . O percentual  total de jovens negros no DF é de  (59,6%) era superior à proporção da população negra no DF (57,3%). Da mesma forma, o percentual de pessoas LGBTQIA+ (5,9%) era maior do que a média encontrada na população em geral (3,8%).

Quanto ao trabalho, 42,7% dos jovens estavam ocupados, 11,7% desocupados e 45,6% inativos. Notavelmente, o número de jovens inativos era maior na classe A (67,2%), enquanto na classe D e E, 40,2% estavam inativos. Este último grupo estava predominantemente ocupado (43,0%), revelando a realidade das juventudes periféricas, que, embora informalmente, estão inseridas no mercado de trabalho. Evidenciam-se que a queda na escolarização coincide com o aumento da inserção no mercado de trabalho.

Criminalização da juventude

Por outro lado, o Estado, que deveria proteger, muitas vezes se manifesta através de violações, como a violência policial e o descaso na rede pública de saúde. Nas escolas públicas, há uma contínua criminalização dos jovens. Nos grandes centros urbanos, suas presenças são questionadas e observadas como suspeita, refletindo o racismo estrutural que permeia a sociedade.

Diante dessas adversidades, as juventudes periféricas têm buscado resgatar suas raízes e ancestralidades, dialogando com o poder público e denunciando as violações de direitos. Reconhecem as origens do adoecimento mental e da criminalização, exigindo segurança e saúde. Suas ações germinam resultados através de mobilizações, ocupações de espaços e disputas de narrativas. Avançam na compreensão política e observam os impactos de suas reivindicações no plano governamental.

O orçamento público precisa priorizar as necessidades das juventudes do Distrito Federal, garantindo infraestrutura educacional, mobilidade urbana adequada e acesso a espaços de cultura e lazer. Como capital do país, Brasília deve se tornar um exemplo de distribuição equitativa de recursos e prestação de serviços públicos.

É fundamental que o Estado reconheça e respeite as demandas dessas juventudes, promovendo políticas públicas inclusivas e eficazes. Somente assim poderemos construir uma sociedade mais justa e igualitária para todos os brasileiros.

Sem as juventudes periféricas, não há caminho. Com elas, já vislumbramos voos sob o céu do planalto! Sankofa.

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*Dyarley Viana é assessora política do Inesc (Instituto de Estudos Socioeconômicos).

**Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato - DF.

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Edição: Márcia Silva