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Arte salva

Artigo | Entre corpos e serpentes, onde você guarda o seu preconceito?

Artista visual tem obra atacada com palavras de discriminação na Chapada dos Veadeiros

Brasil de Fato | Cavalcante (GO) |
"Num país onde somente 8% da população é capaz de ler e interpretar um texto, quantos de nós somos realmente capazes de ver e interpretar uma obra visual?" - Foto: Ruth Bittencourt

A pequena cidade de Cavalcante, berço histórico e cultural, terra de belezas naturais exuberantes, situada na região nordeste do estado de Goiás, mais uma vez se destaca em um episódio de discriminação.

Dessa vez o estopim, o divisor de águas que foi capaz de revelar a intolerância, a discriminação e o preconceito,  baseados na podridão do sórdido fundamentalismo religioso, foi o trabalho artístico de Ruth Bittencourt.

Na tarde desta terça feira, dia 13 de agosto, chegou às mãos da artista uma espécie de manifesto que estava sendo distribuído, em folhetos impressos e em grupos nas redes sociais, por uma moradora da cidade.

O texto tendencioso, apresentava uma tentativa de censura com abordagens de intolerância religiosa, capacitismo, misoginia disfarçada de proteção feminina, entre outros. 

Num país onde somente 8% da população é capaz de ler e interpretar um texto, quantos de nós somos realmente capazes de ver e interpretar uma obra visual?

Ruth Bittencourt é uma artista visual renomada, autora do premiado projeto 'Corpo Segredo' que está em exposição itinerante pelos municípios do estado de Goiás, cujo foco de sua arte volta-se para a valorização dos corpos femininos ditos como fora do padrão imposto por uma sociedade machista e misógina que condena tudo aquilo que sai do estereótipo tido por 'normal'. Recente, ela foi contratada por um empresário local para pintar um imenso painel e valorizar não só o comércio, mas uma esquina cinza e sem vida. 

A obra, de azuis, amarelos e vermelhos vibrantes em contraste com o fundo de cor preta absoluta, retrata elementos naturais e orgânicos como silhuetas de corpos femininos, serpentes, flores e elementos fantásticos, marcas importantes e características da maior parte das obras realizadas na carreira da artista radicada há 20 anos na Chapada do Veadeiros.

Como resposta popular e em repúdio à tamanha discriminação, a grande rede de artistas do município prontamente foi acionada a demonstrar apoio à Ruth. O imenso painel de 10x3m, pintado na lateral de uma propriedade privada situada no centro da cidade, recebeu o dobro do número de visitantes habitual e mais do que isso de fotos e menções nas redes sociais, cumprindo ainda mais o dever de uma boa arte (e de um verdadeiro artista): provocar, levar à reflexão e transformar.

Somos então, enquanto artistas e cidadãos com direito de acesso à cultura e, principalmente enquanto defensores da liberdade de expressão como um dos pilares da sociedade democrática, desafiados a fazermos uso do paradoxo da intolerância descrito pelo filósofo austríaco Karl Popper: até que ponto ideias intolerantes devem ser toleradas se infringem, ofendem ou incentivam algum tipo de violência às liberdades de um indivíduo ou um grupo? Medidas judiciais necessárias deveriam ser tomadas?

O fato é que sustentar uma sociedade tolerante requer, por vezes, não tolerar.

Entre corpos e serpentes, onde você guarda o seu preconceito?

*Priscila Mayer é atriz, cantora, contadora de histórias, escri​tora e produtora cultural. É também idealizadora e fundad​ora da “UMA revista coletiva”.

** Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato DF.

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Edição: Flávia Quirino