naturalizamos a ideia de existirem pessoas à margem da cidadania; expostas a todo tipo de intempérie
Celebrado em 19 de agosto, o Dia Nacional da Luta da População em Situação de Rua é uma efeméride que surgiu a partir de um trágico episódio na Praça da Sé, em São Paulo, quando 15 pessoas em situação de rua foram violentamente agredidas enquanto dormiam.
O Massacre da Sé, em 2004, levou sete pessoas a óbito e, desde então, a data se propõe a relembrar o acontecido, atualizar o luto e promover a reflexão em torno de toda violência promovida contra esse segmento vulnerável da população, bem como alternativas para inclusão.
A violência física seria a mais grave dentro de existências cercadas por violências que provocam grande impacto na vida: abandono, preconceito, desprezo, invisibilidade, falta de oportunidade. Apesar de o artigo 5º da Constituição Federal declarar que somos todos iguais perante a lei, naturalizamos a ideia de existirem pessoas à margem da cidadania; expostas a todo tipo de intempérie, largadas à própria sorte.
A filósofa espanhola Adela Cortina cunhou, em 2017, uma expressão que se propõe a explicar parte desse sentimento que permeia a sociedade: aporofobia. Um sentimento que acompanha a existência humana há séculos, mas que ainda não havia existido preocupação em nomeá-lo. Seria a aversão ao pobre, ao despossuído. Esse sentimento é inerente à luta de classes, mas atinge seu ápice no trato com as pessoas em situação de rua.
De acordo com o relatório do Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania: “População em Situação de Rua – Diagnóstico com base nos dados e informações disponíveis em registros administrativos e sistemas do governo federal”, o Distrito Federal conta com cerca de oito mil pessoas em situação de rua. Esse número pode ser ainda maior, se considerarmos a existência de migrações sazonais.
A questão possui pasta específica no governo local e no federal. No entanto, meu desafio nesse artigo é pensar nessa seara de forma um pouco além da lente oficial. Estamos falando de oito mil seres humanos que acordam sem ter a certeza de uma refeição. Oito mil seres humanos que talvez não tenham a oportunidade de realizar a higiene pessoal. Oito mil seres humanos que despertam sem ter a certeza de onde poderão repousar nem de ter espaço confortável para esse repouso.
Ao associarmos tudo isso a questões estruturais e a trajetórias particulares, podemos apreender que esses humanos não dispõem sequer do essencial no aspecto fisiológico. E são trajetórias difíceis, geralmente marcadas por traumas como desemprego, falta de oportunidade geracional, falta de acesso aos serviços públicos básicos, perda de vínculos familiares. Ainda assim, esperamos que eles devam agir e reagir da mesma forma daqueles que não enfrentam tais privações.
Sinto que a aversão de parte expressiva da sociedade a esse segmento da população parte de um esforço de contaminação do imaginário coletivo. E não tenho por objetivo ofender o leitor ao usar “sociedade”, pois também faço parte dela e realmente acredito que a fonte do problema seja estrutural.
Somos criados dentro de um imaginário em que a prosperidade de uma vida poderia ser medida conforme acumulação de posses; que o sucesso ou fracasso de uma trajetória poderia ser reduzido a mérito individual e/ou força de vontade. Logo, existe dificuldade em enxergar um igual naquele que não foi absorvido por essa lógica insustentável. É como se não gostássemos do que o espelho nos revelasse.
O papel dos Centros Pop
Evidentemente, não acredito que uma pessoa física isolada possa oferecer a solução para uma problemática dessa ordem. É onde entra a ação do Poder Público, pois é para isso que serve um governo: cuidar do povo. Em nível Federal, a instalação de programas de transferência de renda são fundamentais no esforço de recuperação de tais trajetórias. A previsibilidade material associada a serviços de cuidado e qualificação contribuem no esforço para que a pessoa possa existir além da sobrevivência.
Em nível local, o serviço desenvolvido pelos Centros Pop é fantástico. São espaços de convivência onde as pessoas podem receber atendimento psicossocial, orientações sobre direitos e acesso a serviços e benefícios. Também existe espaço para guarda de pertences, higiene pessoal e alimentação. O papel da assistência social e da psicologia é muito importante para a recuperação da plenitude dessas pessoas; mas precisa vir acompanhado de políticas de moradia popular e empregabilidade.
E justamente na oportunidade em que a luta precisa ser fortalecida, recebo a notícia de movimentações contrárias ao Centro Pop de Taguatinga, com sugestões de movê-lo para área mais remota. Apesar do ótimo serviço prestado pelos servidores, o atendimento promovido pelas duas unidades do Centro Pop é insuficiente para o número de usuários.
São necessárias outras unidades em todo Distrito Federal e a centralidade da localização é fator fundamental na recuperação dos usuários. Além da facilidade logística em acessar os espaços, a vivência nas cidades desperta o senso de pertencimento à comunidade. E isso é um fator essencial na recuperação daqueles que tanto sofrem com o isolamento e a invisibilidade.
Somos o fruto das oportunidades que nos foram dadas.
E realmente acredito que há muito potencial humano que só precisa de oportunidade para florescer e contribuir. Possuo a idílica esperança de que a coletividade é o melhor caminho para a prosperidade. E não existe utopia para quem luta. Todos os direitos universalizantes já foram tratados como sonho em algum momento da história. Juntos somos mais fortes no esforço pela plena cidadania a todos.
Convoco todas e todos para refletir em torno dessa causa. O fortalecimento dessa luta é benéfico a toda sociedade. Coloco meu Mandato à disposição no esforço por um mundo mais humano e inclusivo.
*Gabriel Magno é deputado distrital (PT-DF)
**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha do editorial do jornal Brasil de Fato - DF.
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Edição: Márcia Silva