Talvez se os povos afroindígenas tivessem sido indenizados, falaríamos sério sobre meritocracia
Se você digita a palavra “meritocracia” na busca do google, essa é a primeira definição que aparece: “A meritocracia é um sistema social em que o sucesso de uma pessoa depende principalmente dos resultados que ela apresenta. O termo vem do latim meritum (merecer) e do grego antigo krátos (força, poder) e significa literalmente ‘o governo do mérito’.”
Linda teoria! No entanto para que esse “sistema social” seja real e válido, os indivíduos precisam ter acesso oportunidades iguais e, ao menos no Brasil, numa escala de fantasia, a meritocracia está para o bom velhinho que distribui em uma noite, presentes para todas as crianças que têm pais com dinheiro do mundo.
Transição dos séculos XIX e XX
Contexto histórico: Em 1804 o Haiti se tornou o primeiro país banhado pelo Oceano Atlântico a acabar com a escravidão negra. Na sequência, mais revoluções afro-indígenas conquistaram sua abolição enquanto a branquitude no Brasil acreditava que nada disso ia chegar aqui.
Pois bem, passaram-se 84 anos e depois de muito quilombo tocar fogo em casa grande, de senzala abastecer quilombo, de muito povo de terreiro e capoeiras na rua, em 13 de maio de 1888 a princesa Isabel assinou lá o papel e acabou a escravidão no Brasil, contrapondo o Haiti por ser o último país dos litorais atlânticos a abolir a escravidão afroindígena.
No ano seguinte, o que eu chamo de um contragolpe: a Proclamação da República. A branquitude perdeu muito dinheiro com a abolição e decidiu tomar mais poder para si: em 15 de novembro de 1889, o Império brasileiro teve fim e um militar, o marechal Manuel Deodoro da Fonseca, se tornou o primeiro Presidente da República.
Mas isso não foi sinal de progresso? De modernidade? Essa é a propaganda que fizeram e que eu e você acreditamos. No entanto, a historiadora Nirlene Nepomuceno na dissertação "Testemunhos de poéticas negras: de Chocolat e a Companhia Negra de Revista no Rio de Janeiro (1926-1927)" de 2006, aponta alguns aspectos dessa “modernização”.
No período em questão, muitos “homens da ciência” proclamavam, sem nenhum pudor, que o DNA afroindígena era pior que o dos brancos e que a miscigenação era degenerativa.
Tanto foi o caso que, em 1911, a Inglaterra sediou, na Universidade de Londres, o Congresso Universal das Raças. Como representante oficial, o Brasil enviou o antropólogo e, à época, diretor do Museu Nacional do RJ, João Batista de Lacerda. No trabalho apresentado a outros prepotentes homens brancos que, reunidos, acreditavam falar em nome das raças ausentes, João Batista de Lacerda apresentou um “procedimento de redução étnica”, ou, um plano para embranquecer o país até 2010.
Na proposta, metade da população morreria “em razão da fome, doenças, debilidades físicas e incapacidade de assimilar-se à civilização” ou seja, empurrar os pretos para as periferias e exterminá-los. A outra metade, a que se mostrasse ser 10, 20x mais competente que os herdeiros brancos medíocres, se miscigenaria. Conforme trecho da dissertação de Nirlene Nepomuceno: “os mestiços sofreriam um processo lento de depuração das características negras, diluindo-se através de cruzamentos maritais com a crescente população branca importada. Em outras palavras: os negros caminhavam para a autodestruição por não conseguirem se adaptar às condições de uma sociedade moderna”. Segundo as previsões de João Batista de Lacerda, em 100 anos a população brasileira seria completamente embranquecida.
Se você ainda tinha alguma dúvida de que o extermínio da população negra era/ é um projeto oficial dos donos dos meios de produção deste país, não tenha mais.
Imigração
De acordo com o livro "Dicionário da Escravidão e Liberdade", organizado por Lilia M. Schwarcz e Flávio Gomes, “com as primeiras levas chegando em 1550 e as últimas na década de 1860, já que existem registros de envio ilegal de africanos entre 1858 e 1862, estima-se que 4,8 milhões de africanos tenham desembarcado no Brasil".
Outro dado, apresentado por Nirlene Nepomuceno aponta que entre 1891 e 1900, aproximadamente um milhão e cem mil europeus imigraram para o Brasil, número estimado de escravizados trazidos pelo tráfico em mais de três séculos.
Com a Lei Áurea, o trabalho de negres e indígenas escravizados foi substituído pelo trabalho imigrante europeu e o mercado de trabalho foi saturado, deixando ex-escravizades desempregados e sem teto.
Leis da Vadiação
Segundo referências encontradas pela filósofa Sueli Carneiro, as leis de vadiação vêm desde as Ordenações Filipinas, em Portugal. Durante o império, a lei apareceu no Código Criminal de 1830 e, finalmente, no Código Penal de 1891, quando a capoeira foi acrescentada como forma de vadiação. O castigo era a realização de trabalhos forçados. A Lei Áurea tinha 3 anos e os donos dos meios de produção não demoraram a encontrar uma maneira de perpetuá-la entre indivíduos recolhidos pela polícia.
No estudo 'Vadiagem', Lúcio Ronaldo Pereira Ribeiro, diz que “a vadiagem era o ilícito típico dos ex-escravos que vaguevam pelas ruas, pois que não tinham terra, teto, trabalho, nem posses”.
Cultural e Estrutural
Foi também na transição dos séculos que o capitalismo passou a lucrar com o descanso da burguesia. Diz Nirlene Nepomuceno em um outro trecho da dissertação: “O processo de socialização deslocou-se da vida privada para a pública, com os salões de chá, teatros e cafés tornando-se o epicentro de formas de vida cultural cotidianas. [...] Nesse momento a indústria do entretenimento começou a ganhar corpo, propiciando novos modos de lazer”.
No Rio de Janeiro, a população negra e pobre, excluída das mudanças, foi morar na Praça Onze, Estácio, na Cidade Nova e nos morros próximos recebendo o nome de Pequena África, ― reforçando práticas culturais, músicas e danças, vividas desde sempre nas ruas, nos quilombos, nos engenhos e nas plantações, para se afirmar no mundo.
Também muitos cortiços foram derrubados em nome da modernidade, casarões abandonados que serviam de casa para milhares de pessoas como o famoso Cabeça de Porco. Mais uma vez citando Nirlene Nepomuceno: “O cortiço teria abrigado 4 mil pessoas, número que teria caído para 2 mil quando da interdição de uma de suas alas pela Inspetoria Geral de Higiene, um ano antes da destruição [...] Dias antes dessa derrubada, um comunicado informou que ‘o Estado vai facultar à gente pobre que habitava naquele recinto a tirada das madeiras que podiam ser aproveitadas’”. A maior parte da madeira seguiu para um morro próximo que no ano seguinte (1897) recebeu os soldados da guerra de Canudos formando a primeira favela do Rio de Janeiro, hoje, Morro da Providência".
Saúde
A saúde não fugiu do projeto de extermínio das populações afroindígenas: a febre amarela e a malária foram o foco da política de Oswaldo Cruz com estratégias violentas de combate. No entanto, o foco das campanhas eram turistas e imigrantes porque a população africana era praticamente imune a tais doenças. As demandas da população local, como a tuberculose, foram ignoradas.
Por fim, como não debochar dessa suposta Meritocracia Brasileira?
Os povos pretos e indígenas foram expulsos de onde viviam, proibidos de dormir na rua e de ocupar casarões abandonados. As doenças que doíam no povo daqui, especialmente nos povos indígenas, foram utilizadas para dizimar milhões de pessoas e seguir o projeto de embranquecimento do país.
Sem contar os meios de comunicação em massa que vieram reforçar os três personagens que, segundo a professora doutora Leda Maria Martins em "A Cena em Sombras" (1995), foram reservados para o povo negro: serva/o fiel, bandida/o e palhaça. Ensinando as massas que, se não fosse pra servir nem ser engraçado, o negro é bandido e deve morrer. Houveram atualizações da lei da vadiação, ela ainda por aí em pleno século XXI, mesmo que envelhecida e menos descarada.
E é por isso que racismo reverso e meritocracia não existem, ao menos não no Brasil: não é possível ser um trabalhadore periférico e “apresentar os melhores resultados”. E, mesmo assim, afroindígenas se destacam todos os dias Brasil afora.
Talvez se os povos afroindígenas tivessem sido indenizados, falaríamos sério sobre meritocracia.
Talvez se o extermínio não fosse um projeto.
Talvez se a televisão, a escola, os livros não narrassem sempre da vitória do homem branco, fosse verdade ou não.
Talvez se a desigualdade social não fosse tão absurda que existem 51 bilionários, segundo a revista Forbes, no mesmo país que 300 mil pessoas em situação de rua.
Talvez se a história do Brasil não tivesse um roteiro tão racista e explorador, talvez!
Mas não vem ao caso.
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* Naiara Lira é atriz, cantora e produtora cultural na capital.
** Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato - DF.
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Edição: Márcia Silva